Supremo manda repetir julgamento que condenou dois jovens por homicídio
Um homicídio em Albufeira levou o Tribunal de Portimão a condenar dois jovens numa sentença que, segundo um acórdão do Supremo, “fere o elementar sentido de justiça”. O tribunal condenou, acrescenta o Supremo, “sem prova da autoria dos factos”. Esta é uma história revelada por uma investigação do Projecto Inocência.
Cláudia Marques Santos e Paulo Pena
O Supremo Tribunal de Justiça ordenou a repetição do julgamento no caso em que dois jovens foram condenados por homicídio, na sequência das agressões que causaram a morte a Paulo Santos, na madrugada de 3 de Setembro de 2017, em Albufeira.
Esta decisão, tomada pelos juízes-conselheiros Helena Moniz, Eduardo Loureiro e António Clemente Lima, torna obrigatório um novo julgamento deste caso, uma vez que a anterior decisão da primeira instância (Tribunal de Portimão), corroborada pela Relação de Évora, continha, refere o acórdão do Supremo, falhas graves: “a existência de uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e “erro notório na apreciação da prova”.
Foi precisamente sobre estes pontos, que agora levaram o Supremo a mandar repetir o julgamento, que o Projecto Inocência realizou uma investigação jornalística sobre este caso, publicada em Julho de 2021 pelo P2.
Ambos os condenados por este homicídio dizem-se inocentes. Um deles, Iúri Semedo, está há quatro anos detido no Estabelecimento Prisional do Linhó, a cumprir uma pena de nove anos. O tribunal de Portimão deu como provado que foi ele o autor do soco que deixou Paulo Santos inanimado no chão de Albufeira, e que de seguida lhe terá ainda desferido um pontapé na cabeça.
Esta conclusão do tribunal baseou-se, apenas, numa única testemunha, de entre as várias que assistiram às agressões e que não confirmaram estes factos, nem na investigação policial, nem na audiência do julgamento. E mesmo esse testemunho foi obtido de forma irregular, explica o Supremo. “Verifica-se que a imputação dos factos ao arguido Iúri Semedo decorria do depoimento da testemunha Álvaro Barrios (turista espanhol) que identificou quem agrediu a vítima como sendo “um rapaz de tez negra”.
Como eram vários os jovens de “tez negra” envolvidos na rixa, a investigação pediu ao turista espanhol que identificasse o autor do crime num vídeo recolhido minutos após as agressões, por outro turista espanhol, que filmou com o seu telemóvel. Álvaro Barrios apontou para a imagem de Iúri, que descreveu, após ver o vídeo, como sendo “a pessoa que vestia T-shirt branca, calças cinza e sapatilhas castanhas de sola branca”.
Essa identificação, como determina a lei, não pode valer como meio de prova, uma vez que não é feita presencialmente, nem resulta da memória da testemunha.
Para os juízes do Supremo, “provar que era o arguido Iúri Semedo que trajava este vestuário no momento dos factos não prova por si só que foi o agressor”. Desde logo porque nos actos participou também o seu irmão, Fábio Semedo, que, além de muitas semelhanças faciais, e da mesma “tez negra”, tem sensivelmente a mesma altura de Iúri (cerca de 1,90), o que fazia destacar estes dois jovens dos restantes que se envolveram nas agressões. Em tribunal, Iúri testemunhou que foi o seu irmão, Fábio, o autor das agressões a Paulo Santos.
A identificação das roupas usadas pelo agressor, feita por várias outras testemunhas oculares, em julgamento, foi diferente da que o turista espanhol fez no seu depoimento para memória futura, após ver o vídeo. Várias testemunhas afirmaram em tribunal, e repetiram a sua memória destes factos aos jornalistas do Projecto Inocência, que o autor das últimas agressões a Paulo Santos vestia calças brancas.
O Supremo critica a forma como o Tribunal de Portimão apenas pretendeu “provar” que Iúri Semedo estava vestido da forma que Álvaro Barrios o descreveu, após ver o vídeo (o que já de si era uma prova ilegítima). “A restante prova apenas indica o vestuário que o arguido Iúri Semedo envergava na altura, mas o que nos diz sobre quem agrediu? Nada.”
De facto, a investigação ao homicídio não recolheu em tempo útil indícios relevantes para provar a autoria das agressões. Essas falhas na investigação, e a forma como o tribunal se baseou num testemunho inutilizável, fizeram com que agora a Justiça fique “sem prova da autoria dos factos”, critica o Supremo.
“Relativamente à autoria dos factos, sem referência ao vídeo, esta resume-se a uma descrição de uma pessoa de “tez negra” (não sendo o único). Sem referência ao vídeo, sabemos que Iúri Semedo estava com um certo vestuário, mas mais nada”, resumem os juízes-conselheiros. Por isso, garantem estar “perante um caso de erro notório na apreciação da prova”.
Trata-se deumn erro que se baseia num “vício do raciocínio na apreciação das provas” e que “constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça”, continua o acórdão do Supremo. Numa passagem reveladora, o tribunal superior admite não entender sequer “o modo como o tribunal chegou à conclusão da autoria do segundo soco”.
Já sobre o primeiro soco o Supremo revela que a sentença apresenta “uma contradição entre os factos provados e a fundamentação”. O primeiro soco na vítima, segundo a sentença agora “anulada” pelo Supremo, teria sido da responsabilidade de João Semedo (que nega ter participado na agressão), e é amigo de Iúri sem qualquer relação de parentesco.
Numa primeira decisão, o Supremo ordenou ao tribunal que esclarecesse por que condenara João Semedo por homicídio sem que demonstrasse que o murro que deu provocara qualquer efeito na vítima. A primeira instância reescreveu a sentença para incluir o homicídio por “co-autoria”.
O Supremo considera que esta mudança não está provada. “Não só não está dado como provado a existência de um acordo prévio de ambos os arguidos no sentido de actuarem em ordem a matar a vítima, como não está dado como provado que o objectivo do arguido João Semedo (o que primeiro actuou), quando deu o primeiro soco e atirou a vítima ao chão, era matar a vítima, nem sequer está provado aquilo que permitiria afirmar a co-autoria sucessiva (um acordo no decurso da acção e o contributo do segundo para a realização típica do primeiro).”
Isto leva o Supremo a concluir “que, tal como os factos agora se encontram provados, o que se verifica é que do primeiro soco dado pelo João Semedo não resultou a morte da vítima, uma vez que esta ainda se levantou e cambaleou (facto provado 1.14); e só após o segundo soco desferido por Iúri Semedo é que a vítima ficou prostrada no chão e inanimada (facto provado 1.14)”.
A pergunta, que fizemos no trabalho publicado no P2, é repetida pelo Supremo: como se pode condenar alguém por um homicídio provando apenas que o arguido deu um soco na vítima? Os conselheiros consideram que “não é em abstracto previsível que um simples soco cause a morte (a menos que resultasse provado que o soco foi desferido com tal força e violência que tinha sido o bastante para colocar o ofendido inconsciente tendo caído e batido com a cabeça no chão completamente desamparado, porque já inconsciente — mas nada disto resulta dos factos provados)”.
Nas alegações finais que fez em julgamento, o próprio Ministério Público (que acusava os arguidos) pediu a absolvição de João Semedo.
Este caso, que resultou de um motivo “fútil”, como descreveu o Ministério Público, e provocou a morte de uma vítima inocente — e um abalo irreparável na sua família, que inclui um filho menor – está desde 2017 por conhecer um fim.
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