A sentença que condenou de mais e de menos
O rapaz que começou por tentar acalmar os ânimos chama-se Bruno Vieira. Os seus dois colegas de trabalho foram também agredidos. “Foi uma coisa que quis apagar da minha cabeça”, diz-nos. Todos os envolvidos neste caso nos dizem o mesmo: trauma, querem esquecer, não acreditam na justiça.
Regressando à cronologia dos acontecimentos daquela noite, Paulo foi primeiro agredido com um soco, cambaleou e caiu ao chão. Levantou-se. Voltou a levar um soco, caiu inanimado no chão. Já no solo, o autor deste último soco deu-lhe, ao fugir, um pontapé na cabeça. Uma condutora que ia a passar, parou o carro para auxiliar a vítima e chamou o INEM. O corpo de intervenção da GNR chegou entretanto. A condutora seguia as instruções que o INEM lhe dava por telefone para estabilizar a cervical de Paulo, enquanto a própria emergência médica não chegava.
Paulo tinha saído com uns amigos nessa noite, duas raparigas e o colega de casa, Abacuc Felipe Silva. As duas amigas precisavam de ir à casa-de-banho e Felipe foi com elas. Paulo tinha ficado junto à roulotte para comer qualquer coisa. Os amigos estranharam o facto de Paulo nunca mais se juntar a eles, até que receberam uma chamada do seu telemóvel. Mas não era o próprio do outro lado da linha. “Quando cheguei, a pessoa que estava com o telefone na mão [eu] nunca a tinha visto”, diz-nos Felipe. “Nem sei como o telefone dele estava desbloqueado. Teria de estar com o telefone na mão para poderem ter ligado por ele.” Foi Felipe quem ligou para o irmão de Paulo, Dário, a avisá-lo do sucedido, que acorreu de imediato ao local.
Os ânimos não tinham ainda acalmado. O grupo de amigos tentou fugir, mas foi apanhado pela GNR. Alguns foram identificados e depois mandaram-nos dispersar.
No meio da confusão, houve também ameaças verbais diversas, com o indivíduo de calças brancas a ameaçar uma das testemunhas que, se abrisse a boca, lhe daria um tiro de caçadeira.
A INVESTIGAÇÃO QUE NÃO INVESTIGOU
Uma vez que agressores e agredidos não se conheciam, o problema que se colocou para a investigação criminal foi o de identificar quem bateu em quem e, mais importante, quem agiu com aquilo a que os tribunais chamam de dolo – ou seja, intencionalidade –, ao dar um pontapé na vítima quando esta estava já irresponsiva no chão. Para isso, tanto o Ministério Público como a polícia basearam o caso em quem tinha vestido o quê.
“Terá havido uma rixa entre vários indivíduos, por motivos fúteis relacionados com o consumo excessivo de álcool.” E mais à frente: “devido ao estado de total embriaguez de todos os intervenientes não foi possível averiguar os motivos de tais factos”, pode ainda ler-se no auto da GNR. No item “suspeitos actuaram em grupo (3 ou mais pessoas)?”, está respondido “não”. Do grupo dos oito amigos, a GNR identificou apenas cinco, nos quais estavam incluídos João Semedo e Iúri Semedo. Mais tarde, o Ministério Público (MP) acrescentou um a essa lista, o indivíduo que várias testemunhas oculares apontaram como autor do pontapé na cabeça da vítima inanimada no chão, e constituiu-os arguidos. De todas as testemunhas com quem o Projecto Inocência (PI) falou, há uma alegação comum: houve poucos culpados neste caso.
O PI falou com uma testemunha que revelou ter identificado claramente, à GNR naquela noite, quem foi o autor do pontapé na cabeça da vítima já no chão: vestia calças brancas. Estranhamente, este testemunho não foi registado no auto de notícia da GNR. Esta mesma testemunha ocular, que pediu para não ser identificada neste trabalho por temer represálias, revela-nos ter entregado mais tarde um vídeo de telemóvel à PJ, que gravou do grupo dos agressores na altura, mas este vídeo não faz parte da matéria de prova do processo – apesar de vir referido no auto da inquirição que o MP fez a esta mesma testemunha.
A família da vítima queixa-se ao PI de que a identificação dos envolvidos por parte da GNR no local foi muito deficiente: não identificou todos os agressores e não registou contactos de agredidos ou sequer testemunhas. O que levou inclusive duas familiares, a irmã e a ex-mulher da vítima, grávida de sete meses, a fazerem o papel de polícia e irem procurar as testemunhas e/ou agredidos para lhes pedir os contactos e os entregar na esquadra. O próprio irmão da vítima fotografou no local aquele que na hora várias pessoas apontavam como o agressor fatal do irmão e entregou o ficheiro à PJ. Mas mais estranhas foram as MMS que a família diz ter recebido ainda naquela noite, com as fotografias dos cartões de cidadão de vários dos agressores – a que o PI teve acesso – onde se via claramente as suas caras e nomes. Com que objectivo foram estas imagens supostamente enviadas não sabemos: provocar que se fizesse justiça pelas próprias mãos?
Durante os cinco dias em que Paulo Santos esteve em coma no hospital, queixa-se a família, não houve qualquer visita por parte de qualquer polícia, nem sequer o corpo foi posteriormente sujeito a exames periciais para tentar encontrar vestígios de suor ou sangue ou outras matérias componentes ou existentes em sapatos – resultados esses que ajudariam a identificar os autores dos socos e do pontapé na cabeça. A autópsia revela somente as muitas e graves lesões que o corpo apresentava.
Apenas passado um mês, a 03.10.2017, é que a PJ se dirigiu a casa dos arguidos e lhes apreendeu roupa e sapatos para serem testados. Esta teria sido uma prova científica fundamental. Os exames laboratoriais à roupa e sapatos permitiriam concluir quem, de facto, teria agredido Paulo a pontapé. Mas a perícia, de 7 de Novembro, ou seja, dois meses depois dos acontecimentos, revela sem surpresa não terem sido detectados vestígios de sangue nos itens analisados, tomados como os pares de ténis do grupo dos oito amigos, pelo que não se pôde proceder à comparação de ADN com a amostra que existia do sangue de Paulo.
“Fomos identificados um mês depois, no dia 3 de Outubro, e no dia 4 já eu estava preso. Pediram-me a roupa que eu tinha, eu já nem me lembrava bem, mas depois fui buscar a roupa”, esclarece-nos Iúri.
Entre aquela madrugada de domingo e a detenção para ser presente ao juiz, Iúri pôde ir visitar a namorada, que vivia em Londres. Diz ter sido totalmente surpreendido quando a PJ lhe bateu à porta. “Isto foi uma semana depois de eu ter chegado.” Iúri diz ter sabido pela televisão que a vítima, Paulo Santos, tinha, entretanto, falecido. “Vi na televisão que estávamos a ser associados ao crime. Através do vídeo, dava para ver que éramos nós.”
O vídeo a que Iúri se refere foi filmado por um turista espanhol que, juntamente com dois amigos, se encontrava junto à roulotte naquela noite. Este vídeo também não foi recolhido pela GNR na altura. Das várias tentativas de contacto por parte do PI, apenas um destes três turistas espanhóis respondeu, dizendo não querer falar sobre o caso. Mas, na altura, foram os próprios que se dirigiram a uma esquadra para entregar o vídeo. Nele, pode ver-se um grupo de pessoas em fuga, a puxarem-se umas às outras. O indivíduo de calças brancas passa da esquerda para a direita, a aproximar-se da roulotte, os outros na direcção oposta, para se afastar dela. Este vídeo foi um dos elementos-chave para decidir a culpa de quem, no entendimento do colectivo de juízas presidido por Antonieta Nascimento, foi responsável pela morte de Paulo Santos.
Iúri e João, na altura com 23 e 22 anos, tinham ido sair na noite de sábado, 2 de Setembro de há quatro anos, juntamente com um grupo de seis amigos. “Depois de vários meses a trabalhar, eu e os meus colegas decidimos sair. Era a última festa de Verão. Vimos o cartaz de uma discoteca, o Lick, em Vilamoura, Quarteira. Decidimos ir para lá, mas aquilo estava muito cheio. Estava muita confusão. Foi quando decidimos ir para Albufeira”, explica Iúri. “Era já tarde, umas cinco e tal… Não conseguimos entrar, então decidimos ir comer a um outro sítio.” Seguiram para a discoteca Club Vida, em Albufeira, onde tentaram entrar sem sucesso. As imagens de videovigilância desta discoteca foram depois requisitadas pela PJ para identificar os membros do grupo e respectivas roupas. “Não nos foi permitida a entrada uma vez que já havia precedentes lá”, complementa João Semedo. “A pessoa do grupo que não podia entrar já estava a começar a exaltar os seguranças”, explica. “No caminho, quando íamos para o carro, numa questão de cinco minutos ou nem isso – estávamos todos perto um dos outros –, um dos meus colegas ficou para trás. Começou a haver uma confusão e ouvi o barulho.”
O colega que ficou para trás, junto à roulotte de comida, Uma Beca de Fome, foi o instigador da confusão que veio a acontecer a seguir. Um casal de namorados, hoje casados, aguardava a comida que tinha pedido, até que ela começou a levar com fumo de cigarro atirado de propósito. O namorado avisou o fumador de que estava a incomodar, mas foi ignorado. Enquanto isso, três colegas que tinham acabado de sair do trabalho, num bar ali perto, estavam sentados numa das mesas que a roulotte disponibilizava aos clientes, do lado esquerdo de quem está de frente. Junto à metade esquerda da bancada da roulotte, o namorado da rapariga que levou com o fumo acabou por empurrar o provocador. Um dos três colegas de trabalho levantou-se e tentou acalmar os ânimos. O autor da provocação foi embora, na direcção da berma oposta da estrada, a caminho do parque de estacionamento. Regressou passados poucos minutos, acompanhado dos amigos. Segundo os depoimentos recolhidos mais tarde pela PJ, corroborados depois pelos testemunhos em tribunal, o grupo começou a distribuir murros por quem ali se encontrava, como que a varrer o local. A namorada tentou defender o namorado e foi agredida. Um amigo que se encontrava a conversar com o rapaz que tinha tentado acalmar os ânimos foi agredido e caiu inconsciente. A namorada dele era quem estava a conversar com Paulo Santos – a vítima que veio a falecer. “Eu fui agredido primeiro” refere-nos Dean Hussein, ao telefone, a partir de Inglaterra, onde vive. “Estava inconsciente, no chão, e, quando voltei a mim, já o Paulo estava inanimado, também no chão.” O tom de voz de Dean ressoa a trauma. Ele, a namorada e Paulo eram amigos.
Há duas testemunhas que nos afirmam não ter dúvidas de que o indivíduo que deu tanto o soco derradeiro como o pontapé na cabeça da vítima vestia calças brancas, o que não era o caso dos condenados Iúri e João. Essas testemunhas declararam o mesmo em tribunal, de forma igualmente assertiva. “Eu só vi mesmo o último pontapé. O Paulo estava inconsciente no chão”, diz-nos uma dessas testemunhas, que também não quer ser identificada para esta reportagem. “Por quem foi dado? Não faço a mínima ideia de quem foi. Só sei que tinhas calças brancas!”, refere, exaltada. “Eu não quero entrar outra vez nesse inferno, não quero. Ponto final”, diz-nos. “Perdi muitas noites de sono, houve uma criança que ficou sem pai. Tinha apenas três ou quatro anos [tinha 5]. Eles deviam era ter ido todos presos.”
Além destas duas pessoas, diversas outras testemunhas oculares afirmaram o mesmo em tribunal: o indivíduo que deu o pontapé na cabeça da vítima vestia calças brancas. Paulo Santos deu entrada no hospital com um número elevado de lesões, inclusive “marcado edema cerebral e contusão do lóbulo temporal”, conforme vem descrito no relatório da autópsia. Por que não foi o indivíduo de calças brancas condenado?
Comecemos pelas várias inconsistências que ocorreram durante a audiência de julgamento deste caso, a começar pela análise da produção de prova, como o vídeo filmado pelo turista espanhol. No clip, ouve-se no final: “Iúri, o que é que eu faço?”. Apesar de os advogados de defesa de Iúri terem querido explorar este elemento áudio do vídeo, a juíza presidente recusou o pedido. Isto significa que foi dado como válido em tribunal um documento – usa-se da imagem – que se apresenta rasurado – sem o som nele contido. Ou seja, mesmo que o colectivo de juízas não visse em que é que o som pudesse acrescentar alguma coisa à história, não existe justificação para ter recusado aos advogados a exploração dessa via. Que importância tem esta frase ouvida no vídeo, que João Semedo e Iúri identificam ser a voz do referido potencial agressor que vestia calças brancas? Não saberemos. Aos advogados não foi dada a possibilidade de se reproduzir o som do vídeo em julgamento nem de explorar a existência real dessa frase, o seu autor, a circunstância em que foi proferida e a razão porque teve lugar.
O colectivo de juízas achou que o vídeo seria útil ao tribunal apenas para identificar quem vestia o quê e para inferir que, se um dos indivíduos se deslocava na direcção da roulotte, enquanto os outros fugiam na direcção contrária, seria porque tinha acabado de chegar e não teria tomado parte no que ali acabara de acontecer.
No depoimento de um cabo que integrava o corpo de intervenção da GNR na noite do crime que vitimou Paulo (áudio nº 174050), a advogada em representação do hospital, Carla Abreu, apercebeu-se de que este agente referiu que o instigador dos desacatos – o que começou tudo, com o fumo para cima da cara da rapariga – lhe tinha afirmado ter discutido com a vítima mortal. Porém, quando tentou esclarecer este detalhe com a testemunha, foi interrompida pela juíza, visivelmente cansada e a querer terminar a audiência. Em nenhum outro momento este facto voltou a ser abordado para ser esclarecido.
Durante o testemunho de um dos elementos do grupo de réus mas que não foi constituído arguido (áudio nº 105155):
Advogada: Viu ou não chegar a ambulância ao local?
Arguido: Não vi.
Juíza presidente: Oh Sra. Dra., mas a Sra. Dra. tem dúvidas quanto à intervenção da ambulância? A Sra. Dra. é mandante do hospital.
Advogada: Eu não.
Juíza: Então, Sra. Dra.? Qual é o problema?
Advogada: Nenhum.
Juíza: Então, Sra. Dra.? A Sra. Dra. só tem que fazer a sua prova, não tem de fazer a prova de mais ninguém.
Advogada: A credibilidade da testemunha tem de ser avaliada… (interrompida)
Juíza: E é aferida pelo tribunal que não está aqui de olhos fechados. O tribunal está aqui, está muito atento e já está cansado.
Advogada: Não duvido, Meritíssima. Nós também.
Numa outra audiência, em que se interrogava o arguido que usava na noite do crime calças brancas (áudio nº 145223):
Advogada (para o arguido): O que é que cada um [do grupo de amigos] relatou no regresso a casa? Se se recorda.
Juíza: Essa pergunta não vou fazer. Mais, Sra. Dra.?
Advogada: Meritíssima, haverá conversas que são tidas naturalmente… (interrompida)
Juíza: São conversas dos arguidos, uns com os outros, Sra. Dra.. Isso não tem, com o devido respeito, relevo para ser perguntado.
Advogada: Meritíssima, [é] tão válido como perguntar… (interrompida)
Juíza: Sra. Dra., vai-me desculpar.
Advogada: Com certeza, Meritíssima. Não desejo mais nada, por enquanto.
Outra advogada murmura algo.
Juíza (dirigindo-se a esta): Diga lá, Sra. Dra..
Advogada 2: Meritíssima, se me permite, realmente gera-me aqui alguma indignação… (interrompida)
Juíza: Oiça, Sra. Dra.. Para começo de conversa: Sra. Dra., neste momento, estamos todos aqui com a obrigatoriedade de sermos objectivos no que estamos a fazer. Portanto, as indignações que cada um possa sentir – somos todos humanos e cada um sente o que sente – não são para revelar. Esta audiência não se passa à porta do café nem na rua.
(…)
Juíza: Qual é o esclarecimento que a Sra. Dra. pretende?
Advogada 2: O esclarecimento é que o arguido consiga de alguma forma esclarecer aqui, perante o tribunal, porque é que (…) Iúri o terá incriminado…
Juíza: Sra. Dra., também não tem que responder a essa pergunta. Porque o arguido não é responsável por aquilo que [Iúri] disse. E o tribunal analisa e aprecia com objectividade. É essa a nossa função, senão não estávamos aqui a fazer nada.
Advogada: Estou a tentar perceber… (interrompida)
Juíza: A Sra. Dra. tem mais algum esclarecimento?
Advogada: Sra. Meritíssima.
Dali em diante, todos os advogados disseram não ter mais nada a perguntar ao arguido das calças brancas. Mas o procurador do MP tinha. Pediu que lhe fosse mostrada uma fotografia, a da folha 81 do processo, para que confirmasse o que tinha vestido. A juíza interrompeu-o, dizendo que essa foto já tinha sido exibida ao arguido, ao que o procurador a corrigiu, referindo que tinha sido mostrada, sim, mas a outro arguido, Iúri. A juíza confundira os dois.
Mas nada supera a forma como Antonieta Nascimento tratou uma das testemunhas principais das agressões. Assim que foi chamada a depor, a testemunha ouviu um reparo: “Em bom rigor, a senhora está aqui, hoje, nesta sala, porque a deixaram entrar nessa figura, porque não se vem ao tribunal assim vestido”, começa por dizer a juíza. “Sendo certo que, lá em baixo, quem está a fazer a vigilância não devia ter permitido a sua entrada para vir depor. Como lhe digo, isto aqui é um lugar onde é preciso manter algum formalismo. O tribunal vai ouvi-la, mas não volte a entrar no tribunal nessa figura.”
Considerações à parte sobre os calções que a testemunha vestia, ela seria fundamental para reconstituir a história. Era não só uma testemunha ocular, mas também a pessoa que relatou com mais detalhe o que viu logo naquela noite à GNR. “A minha vontade naquele momento foi dizer «então, ok, vou-me embora. Não tenho nada a ver com isto»”, diz-nos. Mas não foi isso que fez. Depôs de forma assertiva. No entanto, hoje entende que aqueles reparos da juíza levaram a que o seu testemunho fosse desconsiderado.
Entre o grupo de amigos que causou as agressões, a regra de comportamento futuro foi combinada na própria noite do crime: silêncio. “Fui aconselhado pelos meus advogados a não falar em tribunal”, diz-nos João Semedo. Apenas em audiência de julgamento é que Iúri viria a denunciar o autor do soco derradeiro e do pontapé na cabeça da vítima, já no chão.
“Eu não sei o que a juíza fez, mas descredibilizou todas essas testemunhas e, para ser sincero, acho que nenhuma dessas pessoas afirmou que seria eu ”, diz-nos Iúri Semedo. “Pelo menos, nenhuma diz que sou eu. Falam de roupas, dizem que são parecidas, mas não tem nada a ver com a minha indumentária naquela noite.”
Já a advogada do arguido que vestia calças brancas alegou sempre a dúvida na identificação tanto das roupas como das acções do seu cliente para pedir a sua absolvição. E conseguiu.
Como se explica, então, que a dúvida não tenha absolvido também Iúri e João Semedo? João foi condenado porque uma testemunha, que passava de carro pelo local do crime, o identificou em tribunal como sendo o autor de dois socos a duas pessoas diferentes, uma delas a vítima mortal. Esta testemunha disse em audiência de julgamento não se lembrar já da cor das roupas que o agressor tinha vestido – o julgamento decorreu nove meses depois dos factos –, pelo que a juíza presidente, invocando o artº 355º do Código de Processo Penal, mandou-o ler em silêncio o depoimento que tinha dado à Polícia Judiciária. Mas o mesmo tinha já feito o Ministério Público, durante a fase de inquérito, quando chamou esta testemunha ao Departamento de Investigação e Acção Penal, em Albufeira, para descrever o que tinha acontecido: limitou-se a ler – e a assentir – o depoimento dado previamente à PJ. Este foi o testemunho que condenou João.
Quanto a Iúri, um dos turistas espanhóis identificou a sua roupa no vídeo filmado pelo companheiro de férias, aquando dos depoimentos que prestaram para memória futura. Mas a forma como os agressores foram identificados em tribunal foi outra das irregularidades deste caso. Os depoimentos para memória futura foram dados pelos três turistas espanhóis durante a fase de instrução, uma vez que já não se encontrariam no país quando viesse a decorrer o julgamento. Quando o juiz perguntou ao turista espanhol qual a roupa que usava o autor do soco e do pontapé à vítima mortal, o turista respondeu que, através do vídeo filmado pelo amigo, conseguiria identificá-lo – o que não poderia ter feito.
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a que Iúri veio a recorrer depois de ver negado pela Relação de Évora qualquer reparo à decisão da primeira instância, veio precisamente dizer que o depoimento do turista espanhol não podia ser válido como meio de prova, “na parte em que indica uma determinada pessoa que surge no vídeo realizado pela testemunha V. P. como sendo o arguido Iúri Semedo, sem que tenha sido realizado qualquer reconhecimento pessoal, nos termos previstos no nº 2 do artº 147º do Código de Processo Penal” – ou seja, sem que tenha feito um reconhecimento presencial. Na altura, um dos advogados de um dos arguidos ainda reclamou junto do juiz de instrução, pedindo que em primeiro lugar fosse feito o reconhecimento pessoal, mas o pedido foi negado. O STJ reenviou entretanto o caso para a primeira instância para formular nova decisão, retirando esta prova, considerada nula, da equação. Mas a primeira instância manteve a decisão, corroborada a seguir pela Relação de Évora.
Mas as irregularidades nas identificações não ficaram por aqui. As restantes testemunhas, portuguesas, e já em sede de audiência de julgamento, identificaram primeiro os agressores nas fotos (os tais frames do vídeo do turista espanhol que estão apensos ao processo) pelas roupas que tinham vestidas e só depois é que identificaram os indivíduos que se encontravam na sala. As regras ditam o contrário. Como refere o número 2 do artº 147º do Código de Processo Penal, o reconhecimento pessoal deve ser feito primeiro do que os outros tipos de reconhecimento, como fotografias ou vídeos. Além disso, houve testemunhas a pedir para não estarem visíveis aos arguidos aquando da identificação presencial – que é aliás, um pedido sustentado pela lei – mas essa reserva não foi acatada. Pior, na sala de audiência os arguidos estavam colocados atrás da testemunha que dava o seu depoimento, pelo que esta tinha de se virar para trás para proceder à identificação. Estas são as mesmas testemunhas que naquela noite foram agredidas por este grupo de amigos e que decidiram não apresentar queixa.
Os familiares da vítima mortal queixam-se de ter vivido um ambiente de tensão constante no tribunal de Portimão pelo facto de testemunhas abonatórias e acusadoras dos arguidos terem aguardado na mesma sala de espera. “Tanto eu como o meu irmão fomos obrigados a estar na mesma sala de testemunhas que o grupo de agressores do meu irmão”, diz-nos Cátia Nina, irmã de Paulo. “Isto é de uma violência absurda e de uma total falta de proteção.”
Um verdadeiro mistério é a razão pela qual o Ministério Público pediu a absolvição de João Semedo na primeira instância e, uma vez condenado, não recorreu dessa decisão.
João Semedo foi condenado em tribunal a uma pena de oito anos pelo facto de ter sido dado como provado que desferiu um murro em Paulo Santos. O relato da autópsia ao cadáver é claro: pela quantidade de lesões nas costas e na cabeça, a vítima foi sujeita a muitas e violentas agressões. Uma das testemunhas espanholas relatou, no seu depoimento, para memória futura, o pormenor do som da cabeça de Paulo a embater no asfalto.
João Semedo garante-nos que não agrediu Paulo.