(Ainda) o caso da morte do soldado dos comandos com uma G3

Já correu muita tinta sobre o famoso caso do disparo com uma G3 que levou à morte de um soldado dos comandos no regimento da Carregueira, em 2018. O tribunal de Sintra afastou a teoria do suicídio e deu como provado ter sido um colega o autor da morte de Luís Lima. Um ano antes, acontecia o “caso de Tancos” e, em termos políticos, questionou-se a existência tanto da tropa de elite dos Comandos como da Polícia Judiciária Militar. O Projecto Inocência levanta as suas dúvidas sobre o caso 

Ana Patrícia Silva, Cláudia Marques Santos

“Nem que leve a vida toda, só vou descansar quando provar a minha inocência e receber um pedido formal de desculpas pelo que me aconteceu”, disse Deisom Camará, sentado à mesa que compunha o cubículo branco a servir de sala de visitas no estabelecimento prisional do Linhó, em Sintra.

Há seis anos, Deisom Camará foi condenado a 12 anos de prisão efectiva pelo crime de homicídio qualificado e pelo crime de detenção de arma proibida. Foi dado como provado em tribunal que foi ele o autor do disparo da metralhadora G3 que em 2018 matou o soldado Luís Teles Lima, junto à casa de apoio ao paiol do Regimento de Comandos da Carregueira, em Belas.

Em Julho, Deisom fez a sua primeira saída precária, de três dias. Cumprida que está metade da pena, Deisom pode também requerer a liberdade condicional, que lhe permitiria cumprir cinco sextos do tempo e antecipar assim a saída da prisão em dois anos. Mas, como Deisom persiste, até hoje, em declarar-se inocente, contrariando a decisão judicial que seria suposto aceitar, não é provável que o parecer técnico lhe seja favorável.

Na altura com 21 anos, Deisom Camará era soldado dos Comandos desde os 19 e ia integrar uma nova missão na República Centro-Africana. Tinha acabado de comprar um carro — “era um escândalo comprar um BMW e aparecer com ele no bairro” —, ia dar entrada para comprar uma casa e estava a ajudar a avó. “Conheci a Maria, a minha namorada. As coisas estavam a correr mesmo bem. Sentia-me feliz.”

Até hoje, ninguém sabe o que motivou que Luís Teles Lima tivesse perdido a vida nestas circunstâncias. Nas sessões de julgamento, nunca se discutiu o móbil do crime, que cabe ao tribunal determinar para consolidar uma condenação. Ou seja, as razões que Deisom teria para matar Luís Lima não fizeram parte dos quatro factos dados como provados e que levaram o colectivo de juízes do tribunal de Sintra a atribuir a Deisom a responsabilidade pela morte do colega.

 

Mediatizado desde o início, este caso tem também como protagonistas o Exército português, os Comandos e o Ministério Público. Cedo foram criados grupos de activismo em defesa da inocência de Deisom Camará, alguém que se declara até hoje inocente da morte de Luís Lima, sustentando que o colega se suicidou. Esta persistência em declarar-se inocente e as inconsistências do caso, nomeadamente ao nível da prova técnica, fizeram o Projecto Inocência interessar-se pela situação.

Naquela noite

Não era Deisom Camará quem estava escalado para fazer o serviço no posto de sentinela na casa de apoio ao paiol do Regimento dos Comandos da Carregueira, naquela sexta-feira, dia 21 de Setembro; nem sequer para fazer aquele turno, entre as 17h30 e as 19h30. Deisom explicou-nos que tinha acabado de regressar de baixa e o oficial de dia, o tenente Hugo Pereira, perguntou-lhe se não se importava de trocar o turno com um colega do Norte, que assim poderia ir de fim-de-semana. Deisom morava em Agualva, no Cacém, situado no mesmo concelho do regimento, Sintra, e podia ir dormir a casa.

Por isso, também não se importou quando o soldado Leonardo Serrazina lhe pediu para trocarem de horário. Inicialmente, Deisom Camará ia fazer a escala das 15h30 às 17h30, mas o antigo militar não vê nesta troca qualquer intencionalidade nem monta teorias da conspiração a partir dela — vê só mesmo azar. “Fui condenado pela morte do Lima como podia ter sido qualquer um que tivesse sido escalado para aquele serviço”, defendeu, na sala de visitas do EP do Linhó, onde o visitámos.

Desde Março de 2018, Luís Teles Lima integrava a 2.ª Companhia do regimento e era, desde Setembro, auxiliar na formação de tiro de combate na Companhia de Formação. Andava a decidir acerca do seu futuro. O que mais queria era integrar a nova força a ser destacada para a República Centro-Africana, mas tinha sido recusado, porque nos exames toxicológicos que fez para o efeito tinham dado positivo a substâncias ilícitas.

Nesse dia 21 de Setembro, e segundo o Relatório de Reconstituição do Incidente redigido pelo Exército Português — cujas horas e acontecimentos foram dados como provados pelo tribunal de Sintra —, o soldado Lima entrou no quartel da Carregueira pelas 16h29, ao volante do seu carro. Vestido à civil, passou pelo portão de acesso à tapada pelas 18h23, em direcção à casa de apoio ao paiol, o depósito onde estão armazenados a pólvora e outros explosivos.

Entre as 18h30 e as 18h45, Luís Lima terá surgido no interior da casa de apoio ao paiol, onde Deisom estava de guarda. Segundo Deisom, que referiu em tribunal que tinha acabado de lanchar e estava sentado num cadeirão a trocar mensagens de WhatsApp, os dois conversaram pouco, até que Lima pegou na arma de serviço de Deisom, uma G3, retirou-lhe o carregador, que estava municiado com 16 balas reais e uma de salva (de segurança, com pólvora seca). Lima colocou o carregador em cima da mesa e saiu para o exterior. Deisom disse-nos ter olhado de imediato para o carregador para se assegurar de que tinha a munição de salva. Ouviu depois o som do puxar de culatra, o que acreditou ser uma manobra de segurança. Mas seguiu-se um disparo. 

“É habitual a gente pegar em armas”, justifica-se Deisom pelo facto de não ter estranhado — e ter permitido — que o colega pegasse na arma, cuja regra base é a de verificar em primeiro lugar em que estado se encontra. A operação, ou manobra de segurança, implica retirar o carregador da arma, puxar a culatra atrás, verificar que não existe munição na câmara (agora que a culatra puxada expõe a câmara de ejeção), libertar a culatra (que faz um som característico que Deisom terá ouvido), apontar a arma para o ar e premir o gatilho (não havendo munição na câmara, só se ouve o clique do percutor a ser accionado).

O soldado Luís Teles Lima terá morrido entre as 18h48, hora em que trocou a última mensagem via WhatsApp com o soldado Luís Rosado, seu amigo e camarada no regimento, e as 18h56, hora a que o oficial de dia, o tenente Hugo Pereira, recebeu o telefonema de Deisom Camará a dizer-lhe que havia um ferido junto à casa de apoio ao paiol e que era necessário chamar uma ambulância.

À hora de almoço, Lima já tinha estado no quartel, a comer juntamente com o 2.º cabo Rúben Ribeiro e os soldados Eliseu Moreira, Leonardo Serrazina, Rui Santos e Deisom, onde falou sobre a possibilidade de se alistar na GNR. “Nós costumamos dizer que o Lima é o militar que vive no quartel, porque ele é da Madeira. Não vai a casa ao fim-de-semana”, explicou Deisom. “Fica 24 horas dentro do quartel. Por isso, não estranhamos. A presença dele é habitual”, acrescentou.

Deisom admite ter ficado surpreendido por ver o colega na casa de apoio ao paiol, mas não sentiu curiosidade em saber o que estaria ali a fazer. “Achei que ele podia estar a passear. Não fiquei muito atento, estava mais atento à conversa que estava a ter nas redes sociais”, contou. “Estava a combinar coisas para fazer com a Maria no dia seguinte.” Deisom e Maria conheciam-se havia pouco tempo e estavam a começar a interessar-se amorosamente um pelo outro. Maria não é hoje namorada de Deisom, mas a relação de “amizade forte” entre ambos mantém-se, confirmou-nos a própria — Maria tem participado sempre nos grupos de activismo em defesa da inocência de Deisom.

Os momentos seguintes à morte

Às 18h58, dois minutos depois de Deisom ter ligado ao tenente Hugo Pereira a pedir-lhe para chamar uma ambulância, o oficial de dia ligou-lhe de volta: tinha de ser o próprio a falar ao telefone com os elementos do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), de modo a poder socorrer a vítima naqueles momentos preciosos enquanto a ajuda especializada não chegava. Às 18h59, Deisom estava ao telefone com o INEM e, no minuto seguinte, chegaram à casa de apoio ao paiol o oficial de dia e o condutor de dia, o cabo Luís Filipe da Silva. O corpo da vítima encontrava-se em decúbito ventral (de barriga para baixo), com a cabeça junto ao lancil do passeio, que ladeava todo o edifício. Lima tinha sangue a jorrar do peito.

O condutor de dia colocou o telemóvel de Deisom em alta voz. Moveram o corpo para uma “zona mais aberta” a pedido da médica do INEM, de modo a facilitar os procedimentos de socorro necessários, viraram-no de barriga para cima e o condutor de dia tentou estancar o jorro de sangue do peito com a camisola da própria vítima.

Deisom ajoelhou-se junto à cabeça de Lima, para que não fechasse os olhos, segurou inclusive na sua mão que, como contou em entrevista, servia para lhe medir a pulsação, porque o tenente lhe perguntava se tinha pulsação. Quando começou a desfalecer, o condutor de dia tentou fazer a reanimação cardíaca. “Os médicos diziam para tapar o buraco e o Silva [condutor de dia] tapou. Depois, colocou as mãos atrás e eu segurei o Lima pela frente. Foi uma confusão, porque nem eu nem ele sabíamos muito bem o que estávamos a fazer. Estávamos a tentar dar o nosso melhor para o reanimar”, explicou-nos Deisom.

O corpo de bombeiros de Belas foi a primeira equipa de socorro a chegar ao local, sensivelmente 14 minutos depois, pelas 19h14, hora a que o chefe da secção de Operações, Informações e Segurança (agora comandante suplente, desde Dezembro de 2019), o tenente-coronel António Cancelinha, informou o recém-comandante do regimento, o coronel Eduardo Pombo, do sucedido.

Segundo consta no “verbete de socorro” dos bombeiros voluntários, a vítima encontrava-se inconsciente, com hemorragias decorrentes de ferida penetrante e já sem respirar. Procederam de imediato à ventilação via RCR (rapid car rescue), fizeram o controlo da hemorragia e administraram oxigénio à vítima.

Cerca de quatro minutos depois, chegou o INEM. De acordo com a ficha de observação médica assinada por Ana Freitas, quando chegaram a vítima encontrava-se em paragem cardiorrespiratória e foi, por isso, necessário recorrer a manobras de suporte avançado durante 16 minutos. A médica pediu, entretanto, que removessem a arma de junto da vítima. Quem o fez foi o condutor de dia. Deisom segurava o soro. O óbito foi declarado às 19h42. Devido às manobras que foram necessárias para tentar salvar a vida de Lima, o local tinha sido manuseado, remexido e estava contaminado por inúmeras pessoas.

“Depois de declarado o óbito, caiu-nos a ficha. Ficámos todos tristes. Comecei, inclusive, a chorar”, relatou-nos Deisom, enquanto tentava exemplificar, com rabiscos a lápis, num papel, a disposição física de todos os elementos no local e, com setas, indicar tanto as deslocações feitas ao corpo como a visibilidade existente de dentro da casa do paiol.

O comandante do regimento tinha chegado ao local às 19h30, a PSP às 19h33. É a PSP quem é chamada sempre que ocorre uma morte, em contexto urbano. Em caso de suspeita de homicídio, a PSP contacta a Polícia Judiciária (PJ), que passa a tomar conta da ocorrência. Dadas as circunstâncias do evento, o agente principal Simões, da Esquadra de Investigação Criminal de Sintra, telefonou, pois, ao inspector da PJ que estava de piquete, Hugo Silva, e disse tratar-se de “um suicídio com arma de fogo”, mas que as circunstâncias eram “algo estranhas”, dado o tamanho da arma e o ferimento do disparo se encontrar no peito e não na cabeça da vítima, refere o relatório da “notícia do crime” da PJ.

 

Este relatório da PJ indica igualmente que a deslocação desta polícia ao local do possível crime foi anulada porque recebeu uma comunicação do chefe Luz, daquela esquadra da PSP, a dizer que “havia recebido ordens para abortar a comunicação à PJ, uma vez que a Polícia Judiciária Militar [PJM] reclamava a competência para investigar aquela morte”. Tinha sido o oficial que havia informado o comandante do regimento quem telefonou à Polícia Judiciária Militar a contar o sucedido, como refere o relatório intercalar da PJ.

Do suicídio à teoria de homicídio

Foram três os factos que o colectivo de juízes do Tribunal Criminal de Sintra deu como provados e que os levou a condenar Deisom Camará pelo homicídio de Luís Teles Lima: a presença nas mãos do suspeito de resíduos de disparo, ou seja, de pólvora — recolhidos com aquilo a que tecnicamente se chama stubs; a ausência de resíduos de pólvora nas mãos da vítima; e não ter sido dado como provado que a vítima sofria de depressão que levasse ao suicídio. Um quarto elemento que levou o colectivo de juízes a optar pela condenação foi terem considerado as declarações do arguido em tribunal inconsistentes, sem que tenha manifestado arrependimento.

Dois elementos da PJ Militar, o investigador-chefe capitão João Bengalinha e a investigadora-ajudante sargento Sara Carreira, chegaram ao local meia-hora depois de o óbito ter sido declarado. A Polícia Técnica e Científica (PTC) — o coordenador do laboratório Nuno Reboleira e o perito Vítor Dias — chegou 15 minutos depois. Deisom encontrava-se a falar com o comandante do regimento.

O que fez esta polícia desconfiar de um possível homicídio, logo no local, foi o facto de o tiro ter sido dado no peito, e não na cabeça, e o corpo ter caído para a frente e não para trás. Além disso, foi defendido em tribunal que, dado o comprimento da G3 – mede cerca de um metro, dos quais 45 cm são ocupados pelo cano –, seria muito difícil a vítima chegar com as mãos ao gatilho e premi-lo.

No entanto, durante o julgamento, um ex-Comando sobrevivente de uma tentativa de suicídio com uma G3, José Falcato, defendeu o contrário, tendo testemunhado ter tentado tirar a própria vida com um tiro de G3, não apoiada senão pelas mãos, projéctil esse que entrou junto ao mamilo esquerdo, perfurou o pulmão e saiu pelas costas. Aconteceu exactamente a mesma trajectória de bala no caso de Lima. José Falcato tem 1,75m, Lima tinha 1,73m.

Além disso, poderiam ser equacionadas outras possibilidades que não apenas a utilização das mãos: o pé — a vítima usava sapatilhas, cuja sola de borracha seria suficientemente maleável para accionar o gatilho, que é sensível; ou até mesmo socorrer-se do auxílio de um qualquer objecto, como explica o médico-legista Carlos Durão, que explicou também os diferentes tipos de marcas que uma arma de tiro de alta energia — como é a G3 — deixa no corpo da vítima consoante a distância a que é disparada. “O indivíduo, se não alcança o gatilho, pode usar uma madeirinha ou qualquer outra coisa”, exemplifica.

O efeito em estrela que ficou na camisola e na pele da vítima, provocado pela súbita expansão dos gases emanados pelo tapa-chamas existente na extremidade do cano, sugere que o tiro foi feito com o cano encostado ao peito. É isso que vem relatado na autópsia médico-legal feita ao corpo de Luís Lima: “Ferida contusa perfurante, localizada na região peitoral esquerda superior”, que “apresenta uma orla escoriada e enegrecida”, “com formato estrelado com seis vértices”.

“Como existe um tapa-chamas, os gases sobreaquecidos vão escapar pelos orifícios desse tapa-chamas e a roupa fica manchada pelos resíduos de pólvora, como se fossem umas pétalas”, explica-nos Carlos Durão. “Dentro da ferida, também podemos encontrar esses resíduos de pólvora a que chamamos sinal de Benassi. Esse sinal, essa queimadura, essa marca só acontece se a arma estiver encostada na vítima”, continua este médico luso-brasileiro, que dá formação de tiro de alta energia a diversas polícias no Brasil e em Portugal. 

Não ficou provado que tivesse havido sinais de luta, nem no corpo nem nas roupas de Lima, pelo que um tiro à queima-roupa poderia ter resultado de uma brincadeira para medir níveis de testosterona, que muitos testemunhos de militares dizem ser comuns. Deisom Camará nega. “Se calhar, se fosse num quartel de Infantaria, onde as tropas fazem serviço, podia haver esse tipo de brincadeira. Mas no Regimento de Comandos, numa tropa de elite?”, advogou. Deisom tem muito orgulho no seu percurso nesta tropa especializada. “A gente treina a sério para fazer coisas sérias. Não temos essas brincadeiras de colar ou apontar a arma ao peito. Nem eu ia aceitar nem o próprio Lima ia aceitar. Ele tinha anos de casa.” E tinham ambos muita experiência de luta corpo a corpo. “Um militar dos Comandos, que tem treino de Krav Maga dia e noite, nunca iria deixar que alguém lhe colasse uma arma ao peito”, insurgiu-se Deisom perante a sugestão.

E é precisamente para evitar acidentes que os carregadores têm de ter sempre uma primeira munição de salva, ou seja, de pólvora seca, como exige a Norma de Execução Permanente, que tinha acabado de ser actualizada pelo Exército, em Março de 2018, e que refere que “o carregador deve ser introduzido na arma sem munição na câmara”. Em tribunal, Deisom afirmou que tinha verificado e não havia nenhuma munição na câmara.

 

Foi o comandante Eduardo Pombo quem pediu a Deisom e a outro soldado que estava de piquete no regimento, Leonardo Serrazina, para naquela noite desmuniciarem o carregador que estava em cima da mesa, de modo a fazerem a contagem das munições. Fizeram-no em cima do sofá, com o testemunho tanto do comandante como do agente da PSP. Confirmava-se que as balas estavam todas lá: 16 reais e uma de salva.

Cair para a frente

Outro factor que a PJM achou estranho foi o de o corpo da vítima ter caído para a frente após o impacto do tiro. “Um tiro de alta energia relaciona-se com a velocidade do projéctil”, contextualiza Carlos Durão. “Um projéctil disparado por uma arma destas atinge velocidades de 600 a 800 metros por segundo.” Se fosse suicídio, declarou a polícia, o corpo seria necessariamente projectado para trás. Este argumento também não convence este médico-legista, com vasta experiência em autópsias no Rio de Janeiro, onde, dos 40 homicídios diários que ocorrem naquela cidade brasileira, cerca de metade resulta de tiros de alta energia.

“Não entremos nessa. Alguém diz isso porque nunca viu muitas situações destas”, defende Carlos Durão, enquanto demonstra com uma sequência de imagens de corpos autopsiados não só os tipos de feridas provocadas pelas diferentes distâncias a que são dados estes tiros como as formas como os corpos das vítimas são projectados. Bastava a vítima ter-se debruçado sobre a arma e a coronha estar encostada ao chão para que o peso do próprio corpo o alavancasse para a frente. O que explica também que o tiro — que “entrou pela região mamária esquerda, perfurou o pulmão e saiu pela região do dorso lombar” — tenha sido disparado ligeiramente de cima para baixo, como indica o relatório da autópsia. Ou seja, o ângulo não teve de decorrer necessariamente do facto de Deisom ser 12 centímetros mais alto do que era o Lima. Deisom afirma ainda que não se encontrava mais ninguém no local.

Questionou-se também em tribunal o facto de as munições que a PJM apreendeu na rusga que fez à casa de Deisom pertencerem ao mesmo lote que as restantes balas que se encontravam no carregador encaixado na arma aquando do tiro fatal. A bala que matou Lima nunca foi encontrada. Não foi encontrada naquela noite, nem a PJM ou a PCT voltaram ao local no dia seguinte para tentar encontrá-la à luz do dia, apesar da eventual dificuldade em ter sucesso, uma vez que este projéctil chega a ter um alcance de três quilómetros e aquela era uma zona exterior e aberta.

 

Mas a questão do lote é outro argumento falível. Não só é comum os militares terem munições de recordação em casa como cada lote de munições, fabricado pela Fábrica Nacional das Munições, produz milhares de balas, pelo que não será de estranhar encontrar balas do mesmo lote em contextos e locais diferentes. Carlos Durão, que esteve ao serviço do Exército português durante sete anos e chegou a estar em missão no Kosovo, confirma isso mesmo: “É comum os militares guardarem alguma munição em casa, como recordação. É normal isso.” Para mais, Deisom e Lima estiveram juntos em missão, na República Centro-Africana. Poderiam facilmente ter ambos guardado um cartucho de balas como recordação. Na altura auxiliar na formação de tiro de combate na Companhia de Formação e com livre acesso a munições, Lima poderia também ter obtido a munição por esta via. No entanto, apenas foram feitas buscas à casa de Deisom.

Ausência de resíduos vs existência de resíduos

Como foi referido no início deste texto, foi dada como provada a inexistência nas mãos da vítima de resíduos relevantes de pólvora e outros metais (os ditos stubs) provocados pelo disparo, bem como a presença relevante, nas mãos do suspeito, desses mesmos resíduos.

Segundo o parecer técnico do Laboratório de Polícia Técnico-Científica da Polícia Judiciária Militar (LPTC), assinado pelo coordenador Nuno Reboleira, foram encontradas duas partículas nas mãos de Lima — uma na palma da mão direita e outra nas costas da mão esquerda —, o que é muito residual, e oito nas mãos de Deisom. Mas um perito referiu em tribunal que o normal é encontrar 40 ou 50 nas costas da mão que dispara uma arma de fogo.

“Alguns estudos mostram como é fácil adquirir pequenos níveis de transferência ao virar a vítima, por exemplo, agarrando na roupa, agarrando nas mãos, tocando numa ferida, prestando primeiros socorros”, explica-nos o investigador britânico em segurança e ciência forense, James French, professor na London’s Global University. “Todos eles concluem a mesma coisa: que os resíduos de pólvora podem transferir-se facilmente, mas em quantidades muito pequenas.” 

Os peritos justificaram em tribunal que a razão por que Deisom apresentou apenas oito partículas se devia ao facto de ter lavado as mãos duas vezes – se bem que nos vários autos se encontre apenas descrita a vez em que o comandante do regimento mandou Deisom ir ao quartel jantar. O mesmo oficial telefonou-lhe depois a pedir que regressasse à casa de apoio ao paiol para que a polícia científica lhe pudesse fazer a recolha de stubs às mãos. Deisom afirmou-nos que não houve qualquer cuidado nessa recolha: os materiais estavam dispostos em cima da mesa onde tinha estado o carregador de serviço e que estava completamente contaminada, uma vez que não tinham sido efectuadas quaisquer diligências para esterilizar o tampo da mesa onde recolheram os stubs.

Por outro lado, Deisom disse não ter disparado qualquer arma nas 48 horas anteriores (declarações que nunca foram postas em causa), como logo informou à polícia naquela noite e ficou registado no relatório de balística. A polícia científica recolheu amostras de stubs das mãos da vítima e das mãos de Deisom, mas não fez a recolha a qualquer outra pessoa presente que tivesse igualmente manuseado o corpo de Luís Lima e a arma. Assim como não analisou a própria arma, que podia ter no interior do cano vestígios de sangue da vítima ou as impressões digitais do gatilho, que poderiam ajudar a corroborar ou a pôr em causa a teoria de suicídio. A T-shirt da vítima também não foi sujeita a análise por stubs, o que poderia ter ajudado a apurar não só se o tiro fora disparado à queima-roupa como poderia ter explicado a presença desses resíduos de pólvora nas mãos de Deisom.

“Os stubs à roupa da vítima são fundamentais”, afirma Carlos Durão perante o facto de, neste caso, essa análise não ter sido feita. Muito menos foi analisada a roupa de Deisom, para verificar se teria igualmente stubs. “Ao disparar uma arma, é muito possível que partículas de resíduos de pólvora possam ser recuperadas de diferentes locais do atirador. O padrão é o rosto e o cabelo, mas também as mãos e o vestuário”, refere James French. “No que diz respeito à recolha de provas, recomendamos sempre a recolha de amostras no maior número possível de locais”, acrescenta, referindo que costuma ser na roupa que se encontram os vestígios importantes. A recolha de stubs a outros intervenientes nos acontecimentos daquela noite era fundamental, por razões comparativas — por exemplo, ao condutor de dia que manuseou igualmente o corpo da vítima e tentou estagnar o sangue da ferida com a T-shirt desta —, mas, como dissemos, nada disso foi feito.

Outro exame que também ficou por fazer foi o historial de disparo da arma, nas 48 ou 72 horas prévias ao tiro fatal. Logo, lembra o investigador britânico, se a arma tiver sido disparada e não tiver sido limpa antes de Deisom a ter levantado na casa das armas e a ter levado para o serviço, o soldado ficará também aqui, muito provavelmente, com resíduos de pólvora nas mãos.

 

“Eu não aceito tudo aquilo que me é entregue como verdade”, explica Carlos Durão. Este foi o médico que fez a autópsia ao ucraniano Ihor Homenyuk e denunciou as marcas de agressão violentas existentes no corpo da vítima, que em Março de 2020 morreu sob a guarda de agentes do então Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no Aeroporto de Lisboa. “Por exemplo, o caso do cidadão ucraniano. A versão inicial era a de uma morte natural e as investigações provaram o contrário.” Ou seja, que fosse sugestionado a procurar apenas as marcas que consubstanciassem essa teoria. “Portanto, acabamos por contrariar o sistema”, afirma Durão, de cujas palavras resulta que tanto os médicos legistas como as polícias científicas têm tendência a procurar apenas aquilo que lhes é pedido pelos investigadores que encontrem, como vários especialistas em ciência forense já confirmaram, através de vários estudos, nomeadamente aquando da primeira reportagem feita pelo Projecto Inocência ao caso de António, condenado em 2019 pelo homicídio do colega de cela, em Janeiro de 2016, no Estabelecimento Prisional de Coimbra. O Projecto Inocência contactou outros médicos e especialistas em ciência forense e armas de fogo renomados do país, assim como a PJM, para responderem a estas e outras questões, mas não obteve esclarecimentos concretos.

“Gostava de viver”

Não ficou igualmente provado em tribunal que Lima sofresse de uma depressão que pudesse conduzi-lo ao suicídio. Logo no local, o instrutor de tiro, o 1.º sargento Fábio Bargante, confirmou à PJM que tinha uma relação próxima com a vítima e que o pai de Lima tinha falecido havia um ano, facto que tinha deixado o soldado afectado. O 1.º sargento disse ainda que o soldado madeirense estava preocupado com o futuro da sua carreira militar, em parte devido aos resultados positivos dos exames toxicológicos. Ficou triste porque não seria recrutado para a missão na República Centro-Africana, mas não depressivo, defendeu o 1.º sargento. Além disso, estava com problemas de liquidez de dinheiro, como pode ler-se no auto de inquirição da PJM a esta testemunha. “Tinha alguns problemas económicos”, “chegou a usar todo o plafond do cartão de crédito”, mas a testemunha considerou que “não esteve mesmo ‘enrascado’”. O Ministério Público juntou também ao processo os movimentos da conta bancária de Lima naquele último ano. Por aí se observa que o saldo em Janeiro era de 11 mil euros, mas em Setembro era de 600.

“Jamais imaginaria este desfecho, pois ele gostava de viver”, referiu ainda Fábio Bargante, como pode ler-se também naquele auto de inquirição. “É frequente, quando alguém se suicida, a própria família se interrogar sobre os porquês. Nessa procura dos porquês, já entrevistei muitos familiares que dizem frases do tipo: ‘ele jamais faria isso’”, explica-nos o médico psiquiatra Carlos Braz Saraiva, primeiro presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia e fundador da Consulta de Prevenção do Suicídio em 1992.

Este antigo chefe de Serviço de Psiquiatria no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra refere que grande parte dos estudos revelam que cerca de 75% dos suicídios consumados assentaram no carácter eventual da decisão em fazê-lo. Chama-se a isso, em suicidologia, o conceito de ambivalência. “Nós, principalmente os psiquiatras que temos treino em suicidologia, entrevistamos pessoas que sobreviveram a métodos ditos violentos, como um tiro na cabeça, enforcamento num local ermo, projecção de grandes alturas”, conta Carlos Braz Saraiva. “Por vezes — eu, que trabalho nisto há décadas, publiquei e escrevi sobre isto —, pude constatar que é comum ouvir a frase ‘naquele momento, sim, mas passado um minuto ou dois, não’. Isto quer dizer ambivalência. Daí alguns autores defenderem que a ambivalência vai até ao fim. Eu incluo-me nesse grupo de investigadores.”

Este médico psiquiatra acrescenta ainda que, segundo as autópsias psicológicas, 90% dos suicidas sofriam de uma doença psiquiátrica. “Quer isto dizer que algumas pessoas ou não foram sinalizadas, ou então esta sinalização era tão simbólica e metafórica que não foi entendida pelos próximos, incluindo familiares ou amigos.” No caso de Lima, nem o Ministério Público nem a defesa de Deisom pediram uma autópsia psicológica à vítima. O tribunal socorreu-se apenas do teste do Centro de Psicologia Aplicada do Exército feito ao soldado Lima, que indicava que, em termos de bem-estar psicológico, se encontrava bem. Esta avaliação pode ocorrer em quatro momentos distintos: antes de uma missão em território nacional — como era o caso; durante a missão no teatro de operações; após a extração e chegada; ou passados três a seis meses desde o fim da missão, tal como é indicado no site oficial do Exército.

“Há um ditado famoso dos etnólogos, dos biólogos do comportamento, que diz o seguinte: a aranha louca faz a teia louca”, metaforiza Braz Saraiva. Ou seja, quando se faz uma autópsia psicológica, importa saber não só os aspectos clínicos do paciente, mas também aquilo que ele construiu, a tal teia.

“Conheci situações em que inequivocamente se podia falar de suicídios consumados e as pessoas da família não aceitavam isso”, explica Braz Saraiva. Era uma forma de familiares e amigos não se sentirem responsáveis por não terem detectado essa propensão a tempo. “Há pessoas que não têm efectivamente oralidade desenvolvida e desinibição suficiente para colocarem o sofrimento numa certa exuberância de comportamentos — na ordem do que é dito, melhor dizendo —, e fica tudo pelo patamar do não-dito.”

Um estudo sueco, de 2017, intitulado Young Men, Masculinities and Suicide, publicado na Archives of Suicide Research, concluiu que os jovens do sexo masculino constituem um dos grupos de maior risco de suicídio, porque não sabem lidar com as exigências da masculinidade. A análise a uma amostra de notas de suicídio revelou a recorrência de questões como “quando a esperança se vai, ninguém deve saber” ou “a fraqueza nunca é permitida”.

 

“É um problema da ordem do preconceito e do estigma”, conta Braz Saraiva. “’Os homens não choram’, ‘as pessoas têm que ser fortes, têm que ter coragem’. Mas a pergunta é: onde está o botão para carregar e ter coragem? As pessoas quando estão no fundo do poço não vislumbram a luz. E, portanto, precisam por vezes que haja uma mão que as puxe.” Mas nem sempre essa mão está disponível.

“Declarações inconsistentes”

Enquanto em tribunal não foi dado como provado que Lima estivesse num estado depressivo, o mesmo não aconteceu quanto à “frieza” de Deisom, declarada pela PJM em audiência, que o achou “pouco nervoso” naquela noite, dadas as circunstâncias. Além disso, os juízes não gostaram das declarações proferidas pelo arguido, considerando-as “pouco consistentes”.

O acórdão faz referência ao facto de Deisom ter dito em julgamento que fora ele quem inicialmente guardara o carregador e depois o entregara ao soldado Serrazina, mas, no primeiro interrogatório judicial, tinha afirmado que nunca tinha pegado nem na arma nem no carregador. Em tribunal disse também ter ido tomar banho à caserna depois da chegada dos bombeiros e antes de falar com a PJM (e, portanto, sujeitar-se à recolha de stubs), quando no primeiro interrogatório judicial tinha referido ter falado com a PJM antes de ter lavado as mãos.

Os testemunhos em tribunal tanto do oficial de dia como do condutor de dia dizem que Deisom apenas tocou no braço da vítima e não no peito, como este afirmou em tribunal. E houve também declarações do arguido contrariadas por meio de prova: a actividade da aplicação Health instalada no telemóvel de Deisom indica que foram dados passos num equivalente a 98 metros entre as 18h48 e as 18h53. Deisom ligou para o oficial de dia às 18h56, passos esses que não corroboram a sua afirmação de que esteve sempre sentado. Em todo o caso, não foi posta em causa a valia científica de tal aplicação, nem, portanto, ficou esclarecido se o registo era exactamente de passos ou de outro qualquer movimento que pudesse ficar registado de forma semelhante.

“Durante o julgamento, o arguido também não revelou qualquer empatia pela vítima”, lê-se no acórdão. O documento sublinha a frieza do arguido, como alegou tanto o agente da PSP que acorreu ao local como a PJM, relativamente à sua conduta naquela noite. No entanto, acrescenta que foram vários os testemunhos que afirmaram que Deisom Camará estava afectado pelo que tinha acabado de acontecer: o comandante do regimento Eduardo Pombo disse em tribunal que Deisom estava transtornado e por isso o tinha mandado ir lavar-se e comer qualquer coisa ao quartel: igualmente naquela noite, o oficial de dia testemunhou à própria PJM que “o soldado Camará mal falava, porque estava visivelmente transtornado, em estado de choque”, como pode ler-se no relatório intercalar desta polícia.

Ainda assim, o tribunal concluiu, “para além de qualquer dúvida razoável”, que o arguido disparou sobre o peito do soldado Lima com intenção de matar.

“Houve uma testemunha, um polícia, que disse em tribunal que eu estava tranquilo. Eu pergunto a essas pessoas: de onde é que me conhecem para dizerem que estou tranquilo, relaxado ou nervoso?”, insurgiu-se Deisom na entrevista que nos deu no EP do Linhó. “Eu posso estar no meu silêncio, a chorar por dentro e as pessoas acharem que estou calmo.” Deisom acrescentou que, quando a médica disse que já não havia mais nada a fazer e declarou o óbito, ele e os colegas começaram a chorar. “Estava muito abalado, estava em choque. Foi a primeira vez que me senti assim.”

 

 

*O caso de Deisom já esgotou todas as instâncias de recurso internas, tendo sido sempre confirmada a sentença de primeira instância, ainda que nele tenham ocorrido omissões evidentes no âmbito e alcance da prova pericial obtida e na busca pelo móbil do crime, como procurámos aqui aprofundar e lançar a debate. A defesa de Deisom apresentou ainda queixa no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que foi recusada por este órgão jurisdicional do Conselho da Europa.

Circunstâncias externas do caso

Deisom e Lima conheciam-se desde finais de 2016. Luís Teles Lima frequentou o 126.º Curso de Comandos e Deisom Camará o 127.º, curso em que morreram dois recrutas durante as provas de admissão. Dois anos mais tarde, Deisom e Lima vieram a integrar juntos a 2.ª FND – Força Nacional Destacada que esteve em missão na República Centro-Africana.

As Missões Humanitárias e de Paz no Estrangeiro são ambicionadas pelos militares. Segundo refere o site do Exército português, um praça ganha 79,96 euros por dia. Cada missão destas, da ONU, rende cerca de 14 500 euros a um soldado raso.

Devido aos exames toxicológicos que testaram positivo, Lima — que, como referimos no texto principal, tinha 600 euros na conta quando morreu — não iria integrar a missão seguinte.

“O que muitos me dizem é que o suicídio do Lima foi ‘a cereja no topo do bolo’, porque a PJM precisava de se mostrar ao poder político e à opinião pública”, afirmou Deisom durante a entrevista que nos deu, no EP do Linhó. “Até então havia um processo de extinção da PJM. As pessoas achavam que eles não tinham competência para investigar nada.”

E Deisom Camará já não era um desconhecido para a PJM. Tinha sido interrogado como testemunha, na fase de inquérito do processo das mortes suspeitas dos colegas recrutas Hugo Abreu e Dylan Silva durante a Prova Zero no campo de tiro de Alcochete, num dos dias mais quentes desse ano. Este caso levou 19 militares do Exército a julgamento, acusados de 539 crimes cometidos durante o curso 127.º dos Comandos, mas Deisom Camará nunca chegou a depor em julgamento.

O Departamento Central de Investigação e Acção Penal de Lisboa tinha ainda em aberto dois processos, por agressões nos cursos 123.º e 125.º, em 2014 e 2015. Na altura, foram também abertos pelo Exército processos de averiguações internos, mas foram arquivados por decisão do coronel Dores Moreira, comandante, na altura, do Regimento dos Comandos da Carregueira.

Em Março deste ano, este ex-comandante foi condenado a um ano e sete meses de prisão com pena suspensa pelo crime de falsificação de documentos, ainda no âmbito do caso da Prova Zero no campo de tiro de Alcochete. Dores Moreira terá entregado um guião da Prova Zero, como é chamada esta prova de admissão, que indicava que os instruendos poderiam beber até cinco litros de água por dia, quando, na verdade, o guião pelo qual estavam a ser guiados era de cursos anteriores, cujo limite era de três litros. A apresentação do documento errado teria como objectivo atribuir culpas aos instrutores e responsáveis do curso pelo racionamento da água e não às altas patentes da hierarquia militar.

Um ano antes da morte de Lima, em 2017, explode outra bomba no Exército português. A 29 de Junho, é comunicado o desaparecimento, detectado na véspera, de material de guerra dos Paióis Nacionais de Tancos. Três meses depois, vem a saber-se que a recuperação desse mesmo material se deveu a uma encenação, que terá sido montada pela PJM, que investigava o caso, com a conivência de altas patentes da GNR, o que levou à demissão do então ministro da Defesa, Azeredo Lopes.

Dois nomes estiveram envolvidos neste caso: os inspectores da PJM Nuno Reboleira e João Bengalinha, os mesmos que um ano depois estiveram a investigar a morte de Luís Lima nas instalações do regimento dos Comandos na Carregueira.

Reboleira, ex-coordenador do Laboratório de Polícia Técnico-Científica da PJM, foi então acusado de cinco crimes em cúmulo: associação criminosa, tráfico e mediação de armas, falsificação ou contrafacção de documento, denegação de justiça e prevaricação e favorecimento pessoal praticado por funcionário. Mas, em 2023, o Tribunal da Relação de Évora declarou nulo o acórdão do julgamento de Tancos. A utilização de metadados como meios de prova foi um dos fundamentos dos desembargadores para invalidarem a condenação de 11 dos 23 arguidos feita pelo Tribunal de Santarém.

Ainda assim, em Junho deste ano, saiu em Diário da República que Reboleira foi alvo de processo disciplinar, o que o levou a apresentar um pedido de exoneração. Já Bengalinha, o primeiro inspector da PJM a deslocar-se aos Paóis de Tancos juntamente com Vasco Brazão, porta-voz da PJM à altura, foi afastado do caso ainda naquele ano.

Vasco Brazão veio a ser detido um ano depois, em 2018. Este é o ano da morte de Lima e em que se descobre mais uma polémica a envolver o Exército português, em concreto os Comandos: o comandante da 6.ª Força Nacional Destacada na República Centro-Africana informa o Estado-Maior-General das Forças Armadas que havia militares portugueses envolvidos no tráfico de diamantes. O Estado Maior entregou, por sua vez, a denúncia à PJM para investigação. Vasco Brazão foi detido quando regressava precisamente de missão República Centro-Africana.

 

Foram realizadas buscas de norte a sul do país, inclusive, no regimento de Comandos, no quartel da Carregueira. A testemunha que depôs sobre a personalidade de Luís Teles Lima, no julgamento destinado a apurar a autoria da sua morte com um tiro de G3, Paulo Nazaré, foi um dos militares então envolvidos nesta rede criminosa, com ligações internacionais, que se dedicava ao contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafacção e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas.

Com Lisleine Uchôa do Lago e Paulo Pena, jornalistas. Filipe Santos e Susana Costa, sociólogos, investigadores do Centro de Estudos Sociais. E Isabel Duarte, jurista.

Se conhecer um caso cuja condenação de alguém mereça ser investigada por nós, mande informações para projecto.inocencia@gmail.com