Ilustrações de Miguel Frazão

Marcos morreu na cela, António foi condenado sem razão

Cláudia Marques Santos e Paulo Pena

Marcos morreu numa prisão portuguesa. Ninguém sabe como, nem porquê. António partilhava com ele a cela e foi condenado por homicídio. As falhas deste caso são óbvias, mas os responsáveis da prisão, da PSP, da PJ, do Ministério Público, do Instituto de Medicina Legal e os juízes do Tribunal de Coimbra não as preveniram. 

António perdeu a liberdade por mais 13 anos e meio.

Esta é a história de uma dupla injustiça cometida por quem tem o dever de garantir a justiça. Até hoje, quase cinco anos depois, ninguém sabe o que aconteceu para que Marcos Silva perdesse a vida, à guarda do Estado, numa prisão. O seu companheiro de cela, António, está no início de uma longa pena, de 13 anos e meio, por um crime que sempre garantiu não ter cometido. Nenhum dos dois homens, nem as suas famílias, tiveram recursos para que este caso saísse da penumbra. A morte de Marcos não abriu telejornais. A defesa de António coube a uma advogada oficiosa, sem tempo nem meios para torná-la mais eficaz.
Na cela 17 da ala G da prisão de Coimbra, no dia 13 de Janeiro de 2016, aconteceram muitas coisas. Não há dúvidas de que várias regras foram quebradas, muitos comportamentos institucionais são criticáveis e tudo isso revela um retrato de fragilidade das garantias que o Estado e a Justiça em Portugal devem aos seus cidadãos.
Nada do que se sabe ter acontecido naquele dia, ou na véspera, permite concluir, sem margem para dúvidas, que Marcos foi morto – nem que António o matou.
Esta é a história de uma dupla injustiça cometida por quem tem o dever de garantir a justiça. Até hoje, quase cinco anos depois, ninguém sabe o que aconteceu para que Marcos Silva perdesse a vida, à guarda do Estado, numa prisão. O seu companheiro de cela, António, está no início de uma longa pena, de 13 anos e meio, por um crime que sempre garantiu não ter cometido. Nenhum dos dois homens, nem as suas famílias, tiveram recursos para que este caso saísse da penumbra. A morte de Marcos não abriu telejornais. A defesa de António coube a uma advogada oficiosa, sem tempo nem meios para torná-la mais eficaz.
Na cela 17 da ala G da prisão de Coimbra, no dia 13 de Janeiro de 2016, aconteceram muitas coisas. Não há dúvidas de que várias regras foram quebradas, muitos comportamentos institucionais são criticáveis e tudo isso revela um retrato de fragilidade das garantias que o Estado e a Justiça em Portugal devem aos seus cidadãos.
Nada do que se sabe ter acontecido naquele dia, ou na véspera, permite concluir, sem margem para dúvidas, que Marcos foi morto – nem que António o matou.

A CENA DO CRIME​​

No dia 13 de janeiro de 2016, quando fazia a contagem final dos reclusos da ala G da prisão de Coimbra, o guarda Vítor Vicente parou à porta da cela 17. Na cama inferior do beliche, Marcos Silva estava deitado de barriga para baixo e não respondeu. Vicente aproximou-se da cama e insistiu. Marcos não reagiu. 
O médico da prisão, França da Costa, deslocou-se à cela e fez a “verificação de óbito”, às 19h05. Ali, atestou que o corpo não apresentava “sinais de agressão”. 
Nessa altura, a prisão contactou a PSP de Coimbra. Minutos depois, o agente daquela polícia António Caniceiro passou o portão de ferro forjado da Rua da Infantaria 23, para elaborar a “participação” da morte.
Este foi o primeiro momento decisivo. Ao chamar a PSP, a prisão concluiu, imediatamente, que se tratava de uma morte natural. Se tivesse alguma suspeita de que poderia ter ocorrido um crime, a polícia a chamar seria, obrigatoriamente, a Judiciária. 
O agente Caniceiro tipificou o caso como uma “morte sem assistência médica” e não accionou a “inspecção judiciária”. Ou seja, para a prisão, e para a PSP, não houve factos que levassem a considerar aquela como uma “cena de crime”, registando observações ou desencadeando técnicas policiais para recolha e conservação de vestígios e elementos de prova. Pelo contrário, como veremos. 
Logo depois da chegada da PSP, a prisão contactou o Instituto de Medicina Legal (INMLCF) de Coimbra. A médica legista, Cristina Cordeiro, fez o curto trajecto entre o Largo da Sé Nova e o Jardim da Sereia. Não se sabe, exactamente, a que horas iniciou a sua perícia. Sabe-se, apenas, que a concluiu às 22h30 da noite de 13 de Janeiro.
Está escrito na informação oficial que a médica legista contactou por telefone, às 21h, o serviço de Prevenção de Homicídios da PJ. Aparentemente, a essa hora, Cristina Cordeiro já tinha concluído a sua perícia no local e examinado “o hábito externo do cadáver”. Na chamada que fez para a PJ, a médica garantiu não ter “observado lesões traumáticas recentes que pudessem ser causa adequada de morte, nomeadamente ao nível do pescoço”. Tratava-se, “aparentemente”, segundo Cristina Cordeiro, de uma “morte natural”.
Da mesma forma que não se sabe por que a prisão chamou a PSP, e não a PJ, desconhece-se por que razão, mais tarde, a médica legista resolveu ligar para a prevenção de homicídios da Judiciária, deixando ao critério daquela polícia a “necessidade” de se deslocar à prisão, como consta dos registos. A inspectora Sandra Roxo, juntamente com o especialista adjunto Rui Craveiro, decidiram, ainda assim, deslocar-se à prisão, a dois passos da sede da PJ, na alta de Coimbra.
Susana Roxo e Rui Craveiro descrevem que encontraram Cristina Cordeiro acompanhada por “vários elementos” da guarda prisional e da PSP e que a cena estava já toda comprometida. 
O corpo de Marcos, que foi encontrado pelo guarda prisional deitado de barriga para baixo no beliche, estava agora deitado de costas, no chão da cela, “com os pés virados para a porta”. A inspectora Roxo dá nota disso mesmo, assegurando que “o cenário já havia sido alterado”.
O cenário e o próprio cadáver. Nas fotos que tirou, a PJ mostra o corpo de Marcos deitado no chão, com o pescoço e o braço em posições diferentes daquelas que a fotografia do corpo na posição original, na cama, mostra. Alguém mexeu no pescoço de Marcos para o transportar para o chão? O cadáver apresentava rigidez acentuada nessa altura? Com a manipulação do corpo terá sido provocada alguma lesão post-mortem no corpo de Marcos? As perguntas são óbvias, mas não foram tidas em conta pela investigação.
No chão – que não foi coberto com qualquer protecção –, Marcos estava vestido com “duas camisolas de algodão, uma cinzenta de mangas compridas e, por cima desta, uma azul escura, de mangas curtas e uns boxers às riscas”. Na fotografia tirada pela PJ, vê-se que os boxers de Marcos foram puxados para baixo depois de ter sido retirado da cama. Esta era a roupa que vestia no frio de Janeiro
A PJ – que não aceitou falar sobre este caso – não recolheu qualquer vestígio no local. Ninguém verificou as unhas da vítima, nem retirou quaisquer amostras.
O corpo de Marcos foi retirado da cama (não se sabe por quem, nem com que cuidados para não contaminar o cadáver), foi depositado no chão sujo, e frio, de azulejos, da cela, prejudicando qualquer análise útil à temperatura corporal. Alguém o colocou na posição inversa à que estava quando foi declarado o óbito, produzindo essa mudança uma alteração significativa nos sinais corporais, como os “livores” post-mortem, que poderiam ajudar na investigação. 
“A primeira função, básica, de qualquer investigação criminal é a boa preservação da cena do crime e isso competia à PSP, que é a primeira a chegar ao local”, refere Susana Costa, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com um percurso extenso em investigação policial forense. Há uma “hora de ouro”, garante Susana Costa, nos 60 minutos depois de se encontrar um corpo sem vida, onde as polícias obrigatoriamente devem assegurar que os vestígios biológicos que podem servir de prova não sejam adulterados.
Mas nem sempre é assim que acontece. Mesmo que a morte se dê no ambiente mais controlado pela polícia, como é uma prisão. “Aparece uma pessoa morta, o que é que eu tenho que fazer? É o instinto de cada um que funciona”, resume Jorge Alves, presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional. 
Com a intervenção de três polícias do Estado (guarda prisional, PSP e PJ), de uma perita em medicina legal e dos responsáveis de uma prisão portuguesa, a investigação sobre a morte de Marcos Silva foi comprometida, decisivamente, nas primeiras horas. Não foram recolhidas para análise peças de roupa, não foi procurado qualquer vestígio de ADN, não foi reconstituída qualquer cronologia dos factos do dia. Descobrir se houve um homicídio, cometido quando e por quem, tornou-se, assim, numa tarefa quase impossível.
O corpo de Marcos foi finalmente retirado do chão da cela, fechado num “saco próprio para transporte” e levado pela Servilusa, acompanhada do agente da PSP Manuel Gomes, para o Instituto de Medicina Legal de Coimbra, onde chegou às 23h06 desse dia 13, segundo os registos.

A INVESTIGAÇÃO SEM PROVAS​

A convicção de que se tratara de uma “morte natural” era baseada numa longa lista de factos biográficos. Marcos Silva, que estava a cumprir os últimos dias de uma pena de três anos e seis meses por “furto qualificado”, era toxicodependente. Estava integrado num programa de terapia de substituição, com metadona. Tinha uma longa lista de doenças graves (HIV, tuberculose e hepatite C, atestam os relatórios oficiais). 
Daí que, na prisão de Coimbra desde o final de 2012, Marcos fosse acompanhado regularmente pelos serviços clínicos da prisão e pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Era “um recluso respeitador das normas e educado”, com um “estado de saúde muito precário, que se veio a agravar nos últimos meses que antecederam o óbito”, lê-se no relatório preliminar realizado pelo Estabelecimento Prisional de Coimbra, concluído no dia 26 de Fevereiro, pouco mais de um mês depois da morte.a
Ali, o testemunho do chefe dos guardas, João Gonçalves, é claro. Marcos “passava muito tempo deitado e a dormir”, algo que se agravou nos últimos tempos de vida porque “já se apresentava muito debilitado e recebia acompanhamento médico permanente”, o que levava os guardas, explicou Gonçalves, a permitir alguma “condescendência” para com Marcos, que não era obrigado a levantar-se quando estes faziam os contos.
No dia 13, no entanto, Marcos falhou a toma da metadona. Mas esse facto não foi comunicado aos guardas que faziam os contos. No rés-do-chão, esse guarda era Vítor Vicente. A primeira grande contradição neste caso opõe as versões dadas por este guarda prisional às de António Rodrigues, no inquérito interno da prisão. O companheiro de cela de Marcos garante que avisou Vítor Vicente de que algo de estranho se passava com Marcos, que estivera todo o dia deitado na cama, sem reacção. O guarda prisional, por seu lado, garante que nada lhe foi dito pelo recluso.
O inquérito da prisão concluiu o mesmo que todas as autoridades até então: a morte de Marcos “foi o culminar de um historial clínico de um doente com patologias gravosas”. 
Nessa altura, a autópsia, realizada no dia 14, menos de 24 horas após o corpo ter sido encontrado sem vida, não era ainda conhecida. Só viria a sê-lo dez meses mais tarde, e depois de muita insistência do Ministério Público.
No dia em que foi feita a autópsia, uma nova falha deixa o caso ainda mais frágil. Porque acreditavam tratar-se de uma morte natural ou suicídio, e ao contrário de todas as recomendações procedimentais da PJ, os agentes daquela polícia não estiveram presentes durante o exame, onde poderiam recolher informação, fazer perguntas aos médicos legistas, sugerir análises específicas. 
A principal preocupação das autoridades parecia ser outra: afastar qualquer dúvida sobre “omissão ou negligência dos serviços” prisionais na morte de Marcos. Afinal, um recluso gravemente doente passara um dia inteiro sem responder às três chamadas, deitado na mesma posição na cama, e ninguém procurara saber se necessitava de cuidados.
O DIAP encarregou a procuradora-adjunta Ana Carina Nascimento de abrir um inquérito ao caso e foi enviado ao Instituto de Medicina Legal o pedido para que fosse feita autópsia ao corpo, de modo a “apurar a provável causa de morte”.
Ana Carina Nascimento começou a recolher a informação que já existia. Solicitou ao EP de Coimbra o envio do Processo de Averiguações interno, que como vimos concluíra que a morte se deveu à sua situação clínica frágil.
O que o DIAP e a PJ fizeram, ao longo de mais de dois anos, neste caso, não terá sido, propriamente,
uma “investigação”. Em Maio de 2018, dois anos e quatro meses após a morte de Marcos, o inspector da PJ Armando Santos ainda trocava emails com o director do EP de Coimbra para solicitar os depoimentos dos 12 guardas prisionais e da enfermeira de serviço. 
Só a 28 de Junho de 2018 é que António Sacramento Rodrigues foi interrogado pela PJ. E, logo aí, passou a ser arguido, suspeito de homicídio, e a investigação foi dada como concluída. 
Não se encontra, lendo o processo, qualquer prova, testemunho ou descoberta que justifique a mudança radical na investigação que, de repente, passou a encarar o caso como um homicídio, com um suspeito.
“Se as hipóteses colocadas foram morte natural e suicídio e, de repente, passámos para um cenário de homicídio – a própria Polícia Judiciária não faz inspecção alguma porque não vê nada de relevante no local –, porque é que estamos a falar de homicídio?”, questiona Susana Costa, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “Qual foi o clique que levou a colocar a hipótese de homicídio?” Esta é outra pergunta sem resposta no processo, que expõe as “invisibilidades”, nas palavras de Susana Costa, que não deveriam existir numa investigação criminal.
A 2 de Outubro, o Ministério Público declarou o inquérito encerrado e escreveu a curta acusação, em que os indícios ocupam duas páginas. António matou Marcos, alega a procuradora-adjunta “em regime de estágio” Joana Gouveia, asfixiando-o com as mãos, em hora “não concretamente apurada”. 
Não há, no processo, qualquer facto que sustente esta acusação. Para provar que António asfixiou Marcos com as mãos seria necessário ter recolhido indícios, na noite em que o corpo foi encontrado, de material genético, ou resíduos, nas mãos de António e no pescoço de Marcos. Mas, como vimos, nada disso foi feito. Nem as roupas e a almofada em que repousava o rosto de Marcos foram analisadas. Todas as observações oficiais do hábito externo revelam, pelo contrário, que não há qualquer sinal de agressão no corpo de Marcos.
A conclusão da PJ foi, pois, movida por um salto lógico. Escreveu o inspector Armando Santos, no relatório final da investigação, que, se no dia anterior “Marcos estava vivo”, então, “se hipoteticamente o mesmo foi vítima de alguma acção ilícita durante a noite, só o poderia ter sido por parte do António Sacramento”. 
O problema deste argumento é claro: não se sabe se houve “acção ilícita”, porque a autópsia diz não ser possível afirmar se a causa da morte se deveu a homicídio, suicídio ou acidente; não se sabe a que horas Marcos morreu; e é errado inferir que, mesmo que tudo tenha sido assim, António era o único suspeito possível do crime. Desde logo porque, se havia razões para que as autoridades suspeitassem de um homicídio, haveria obrigatoriamente muitas pistas para seguir na prisão.

AS FALHAS DA“INVESTIGAÇÃO”​

O EP de Coimbra, com apenas 500 reclusos, era recordista numa estatística: um em cada três suicídios em prisões portuguesas aconteceram ali, no ano de 2014, dois anos antes da morte de Marcos.  Esta é uma das informações de contexto relevantes que, quer a PJ, quer o MP, ignoraram. Dos sete reclusos encontrados sem vida nas suas celas, naquela prisão, entre 2006 e 2016, três tinham envolvimento com drogas, fosse por tráfico ou dependência.
“Tendo em conta a sua posição geográfica na cidade, a sua envolvência, o EP de Coimbra tem muito o fenómeno do arremesso de droga para o seu interior”, contextualiza o presidente do Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional. “Mas também não podemos ignorar que tem funcionários envolvidos, inclusive guardas prisionais que foram condenados por isso mesmo.”
Jorge Alves fala mesmo de um “corredor da morte” no EP de Coimbra: “É um corredor que une duas alas, junto ao recreio, em que os reclusos se cruzam.” O sindicalista conta-nos que ouviu, da boca de responsáveis da prisão, que aquele corredor “é onde os reclusos fazem ajustes de contas”.
Em Abril de 2016, três meses depois da morte de Marcos, o Provedor de Justiça visitou a cadeia e elaborou um relatório, sugerindo a instalação de um sistema de videovigilância e a recuperação do sistema de alarme de comunicação das celas. 
Tanto a facilidade com que os presos acediam a substâncias proibidas como a falta de controlo da prisão sobre os riscos de suicídio e os “ajustes de contas” entre presos estavam bem documentadas. Em Janeiro de 2018 começou a ser julgada, em Coimbra, uma rede de tráfico de droga que actuava dentro da prisão. Segundo a acusação do MP, a rede seria liderada por três homens de “caráter violento, sendo temidos pelos reclusos e até por alguns guardas prisionais”.
Da acusação constavam 28 arguidos e os factos aconteceram, pelo menos, desde Janeiro de 2016, precisamente quando Marcos apareceu morto. A lista é longa: cobrança violenta de dívidas a reclusos toxicodependentes, ameaças físicas, extorsão. Na base da rede estavam reclusos que, por
vezes sob ameaças e violência física, guardavam a droga nas suas celas ou no próprio corpo, ou tinham como missão recolher droga vinda do exterior. “Outros desempenhavam, cumulativamente, a função de cobradores de dívidas contraídas na aquisição de estupefacientes exercendo reiteradamente pressão física e ou psicológica”, lê-se na acusação. Um dos reclusos que guardava droga sob ameaças da rede de tráfico suicidou-se, depois de ter sido ameaçado de morte. 
É no mínimo estranho que o mesmo Ministério Público e a mesma PJ que investigavam uma rede violenta de tráfico dentro da cadeia de Coimbra tenham decidido ignorar esse contexto quando investigaram a morte de Marcos, toxicodependente, que tinha por hábito adquirir drogas dentro da prisão a outros reclusos, segundo relataram nos autos os guardas prisionais e o próprio companheiro de cela. António afirmou no processo ter visto Marcos a tomar vários comprimidos comprados a reclusos na última noite em que o viu vivo.
No depoimento dado à PJ, o guarda Vítor Vicente referiu: “Nestes últimos tempos, o Marcos Silva deslocava-se assiduamente para a ala E, conotada com o consumo de produtos estupefacientes, porquanto ele consumia qualquer tipo de produto dessa natureza, bem como medicamentos, que conseguisse angariar.” 
António faria o mesmo, continua o guarda prisional: “Sendo igualmente consumidor, o António [Sacramento] Rodrigues também se deslocava à ala E, mas com menos frequência, apesar de ter mais posses económicas”. 
A “investigação” não escreveu uma linha sobre este tema. À excepção de António, não interrogou qualquer recluso da cadeia, para procurar saber se Marcos comprava drogas, e a quem o fazia, ou se tinha dívidas desse consumo, se tinha sido ameaçado, se poderia estar a ser vítima de uma rede violenta que, à data da sua morte, operava comprovadamente na prisão de Coimbra.
Mas as suspeitas de tráfico de drogas na prisão de Coimbra não incidiam apenas sobre reclusos. Tal como refere acima Jorge Alves, o MP acusou também um guarda do estabelecimento prisional de Coimbra que ali trabalhava desde 1986. Este “fazia-se valer da sua função de guarda prisional e da facilidade de acesso e movimentação que essa condição lhe proporcionava, permitindo-lhe, desta maneira, levar comodamente a cabo tais transações sem levantar suspeitas” e “sem grande esforço”, acrescenta a acusação.
Nesta acusação, que relata o que se passava dentro da prisão de Coimbra no período em que Marcos morreu, poderiam ser encontradas pistas sólidas para uma investigação policial aprofundada: possíveis motivos para o homicídio (represálias e violência de uma rede de tráfico) e uma explicação bem mais evidente para o acesso a uma cela, mesmo quando ela se encontrava fechada (alguém envolvido com o tráfico). Mas nada disto foi tido em conta pela polícia, nem pelo Ministério Público. E a acusação contra António, embora não explique como teria cometido o crime nem porquê, avançou.
Além disso, os investigadores esqueceram outro detalhe importante neste caso. António garante-nos que tinha avançado com um processo contra guardas prisionais por agressões à chegada ao EP de Coimbra e que Marcos aceitara ser sua testemunha. António conhecera Marcos na carrinha prisional que o transportou de Pinheiro da Cruz, onde estava detido, e a carrinha tinha feito um desvio ao Hospital-Prisão de Caxias, onde Marcos tinha passado um tempo a tratar problemas de saúde.
De facto, a investigação teria razões para aprofundar a situação específica dos guardas da prisão de Coimbra. Desde logo,  porque estes não eram suficientes para fazer tudo o que lhes era pedido, critica o sindicalista Jorge Alves. Por essa mesma razão, os “contos” dos reclusos eram feitos apenas por um guarda, e não pelos dois que a lei exige. Vítor Vicente, o guarda responsável pelos contos da cela da vítima, no dia da sua morte, não soube precisar a hora exacta das rondas nem explicar por que disse, em depoimento, que fez um conto às 17h50, saiu às 18h30 e fez uma nova ronda às 18h50.  Vicente disse à PJ que encontrou o corpo às 17h50 e mais tarde, no inquérito interno da prisão, corrigiu para as 18h50.
Entre outras contradições, afirmou que a cabeça da vítima estava virada para o lado direito, “para dentro da cela”, posição contrária à das fotos do processo.  
Em teoria, os contos são feitos, pelos guardas, três vezes ao dia. Mas o próprio director da prisão sentiu necessidade de, após ter mandado instaurar um processo interno de averiguações sobre a morte de Marcos, enviar um email, sete dias depois do ocorrido, ao seu adjunto e ao chefe dos guardas, a reiterar a forma correcta de fazer os contos, frisando que o recluso deve encontrar-se de pé quando o guarda passa.
Quanto às rondas da noite, dos onze guardas prisionais interrogados em tribunal, uns disseram não se recordar quem as fez, outros referiram não conseguir precisar qual a função que desempenharam naquela noite. 
Não há, portanto, qualquer prova de que os contos foram feitos da forma ou à hora previstas. 
Na barra de tribunal, nunca estas contradições foram assinaladas. O colectivo de juízes limitou-se a assumir que os contos e a vigilância daquela ala tinham decorrido como teoricamente deveriam decorrer.
E quando perguntámos ao presidente do sindicato da Guarda Prisional que controlo existe dentro da prisão sobre a circulação de reclusos, a resposta foi peremptória: “Muito claramente, nenhum. Não há qualquer controlo porque não há condições para controlar”.

O erro do julgamento

“Tenho a minha consciência livre, porque eu não tirei a vida ao Marcos, nem tirei a vida a ninguém. Posso ter cometido asneiras, estou a pagar por elas, seja como for” (declaração de inocência de António Sacramento Rodrigues, arguido, em audiência de 4/2/2019)
Quando entrou na sala do tribunal de Coimbra, em Fevereiro de 2019, onde foi condenado por homicídio, António Sacramento Rodrigues, que sempre se declarou inocente, apenas conhecia as duas páginas da acusação do Ministério Público. Nelas, ao longo de 11 pontos, não havia um único indício que o ligasse ao alegado crime. 
A única razão pela qual foi acusado, e condenado, está no segundo parágrafo da acusação: “Em hora não concretamente apurada, mas entre as 18h50 do dia 12 de Janeiro de 2016 e as 8h05 do dia 13 de Janeiro de 2016 (…) o arguido dirigiu-se ao ofendido Marcos Silva e agarrou-lhe o pescoço com as mãos, com força, apertando-o até este asfixiar.” Assim concluiu o Ministério Público e assim sentenciou o tribunal. Se Marcos morrera entre aquelas horas, então António seria o único suspeito, porque entre as 19 horas do dia 12/1/2016 e as 8 da manhã do dia 13, as celas da prisão estariam supostamente fechadas. 
Para esta conclusão do Ministério Público, e para a sentença do tribunal, foi determinante um único testemunho: o da médica Cristina Cordeiro, que fez a perícia local na noite em que o corpo de Marcos foi descoberto sem vida e realizou também a autópsia inconclusiva ao seu cadáver, onde se lê que “medico-legalmente não é possível estabelecer o diagnóstico diferencial entre homicídio, acidente ou suicídio”.
Ao mesmo tempo que garantiu, no documento que assinou, que Marcos morreu de forma “violenta”, devido a uma “asfixia mecânica por compressão extrínseca do pescoço”, a médica acrescentou que não seria possível apurar se essa causa de morte seria acidental, auto-infligida ou cometida por terceiros. No depoimento que deu no tribunal, à distância, a médica foi mais longe que na autópsia e afirmou que, pelo tipo de lesão, “provavelmente” tinha sido uma morte por “esganadura”.
E foi Cristina Cordeiro quem forneceu ao Tribunal o único dado que permitiu condenar António Rodrigues: a hora da morte de Marcos. Na sua opinião de perita, a morte teria acontecido num intervalo de tempo exacto. O diálogo entre o juiz e a médica, que acabou por ser determinante para a condenação de António, decorreu assim:
Juiz: “Ou seja, então, doutora, se nós temos como aqui, digamos, a janela de tempo que a nós nos interessa, se nós sabemos que esta pessoa, porque já tivemos aqui uma testemunha que assim o disse, estava viva aquando da contagem do dia anterior às 7h da noite, e depois a cela é aberta às 8h da manhã (…) o que me está a dizer é que, necessariamente, os livores fixos que constatou levam-nos a que a morte deve ter ocorrido entre as 7h da noite anterior até às 8h da manhã desse dia.”
Cristina Cordeiro: “É o mais plausível supor.”
Determinar a hora da morte de Marcos foi a parte decisiva do julgamento. Veredicto: “O tribunal tem de concluir sem qualquer dúvida que foi o arguido, por razões não apuradas, que asfixiou o falecido Marcos, provocando-lhe a morte, uma vez que só este se encontrava na cela com a vítima aquando da morte deste.”
Contactámos três especialistas portugueses em ciência forense e torna-se claro que a hora da morte não pode ser a prova determinante para uma condenação. A investigação da hora da morte é “a busca do Santo Graal” da medicina, explicam-nos dois deles, em entrevistas diferentes. 
Ricardo Dinis, presidente da Associação Portuguesa de Ciência Forense e professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto: “De uma forma genérica, o intervalo post-mortem não é totalmente seguro porque ainda não temos uma forma cabal de o calcular. Por mais técnicas evolutivas que tenhamos, há muitos factores a influenciar o cálculo da hora da morte que poderão desviar-nos do real intervalo.”
Filipa Gallo, perita médica do INMLCF, membro da direcção do colégio da especialidade de medicina legal da Ordem dos Médicos: “Esses intervalos podem ajudar no processo de investigação. Mas não servem, por si só, para a acusação. São um meio de auxílio, mas por si próprios muito fracos.” 
“Nunca é possível fazer afirmações taxativas e absolutas. Em medicina legal não há verdades dogmáticas e, portanto, há sempre uma exceção à regra. Sempre”, adverte Duarte Nuno Vieira, que é professor na Universidade de Coimbra e tem um currículo único. Foi Presidente da Academia Internacional de Medicina Legal, da Associação Internacional de Ciências Forenses, do Conselho Europeu de Medicina Legal, da Associação Mundial de Oficiais de Polícia Médica, director da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e Presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Director do Instituto de Medicina Legal de Coimbra, e do seu Serviço de Patologia Forense, e Presidente do Conselho Médico-Legal Português.
A médica legista que fez o exame pericial e a autópsia de Marcos, e depôs em Tribunal garantindo que a morte teria ocorrido havia mais de 12 horas, isto é, durante a noite quando a cela estaria fechada, trabalhou sob as ordens de Duarte Nuno Vieira, no INMLCF de Coimbra. 
O professor referiu-nos que tinha o hábito de recomendar, aos médicos que dirigia, uma série de passos obrigatórios no exame. Mas Cristina Cordeiro, aparentemente, não levou em conta os processos recomendados, quer pelo seu antigo director, quer pelo Instituto de Medicina Legal. 
A única forma de garantir que o intervalo de tempo é fiável, explica Ricardo Dinis, é “usar vários parâmetros para calculá-lo e aí termos um valor mais aproximado ao valor exacto”. 
Às 22h30 daquele dia 13, Cristina Cordeiro descreveu no seu relatório de perícia local apenas dois parâmetros: “Cadáver na sala [riscado no original] cela 17 do rés-do-chão da ala G deitado em decúbito ventral, no leito coberto com lençol e cobertor. Apresenta-se frio, excepto na região abdominal, com livores arroxeados, fixos, abundantes, na parte anterior do corpo.”
A médica deveria ter analisado no local cinco aspectos concretos no cadáver, como determina o Instituto de Medicina Legal – além da temperatura e dos livores, deveria ter também assinalado a rigidez, a putrefacção e os sinais de desidratação.
Comecemos pela temperatura. A médica não mediu, nem registou no relatório, o valor da “temperatura corporal” assim como a temperatura ambiente da cela, como recomenda o INMLCF. Os peritos devem escrever no seu relatório “o método e a hora exacta da determinação”. Estávamos em Janeiro, o corpo foi retirado da cama e colocado no chão de azulejos, sem qualquer protecção, e a única menção à temperatura que existe na perícia é um vago adjectivo: “frio”.   
Não é um preciosismo burocrático, explica Duarte Nuno Vieira. A temperatura é mesmo o indício “mais valioso do ponto de vista da prática pericial”. 
“No local onde o corpo é encontrado, determina-se a temperatura ambiente, a temperatura do ar do ambiente onde essa pessoa está, o mais próximo possível do cadáver, porque obviamente a temperatura junto do tecto não é a mesma que a temperatura no chão. Tem que se determinar a temperatura corporal. A temperatura corporal não é medida com um termómetro normal debaixo do braço; é a temperatura retal, tem de ser com um termómetro próprio, idealmente até com uma sonda própria para determinação da temperatura em cadáveres, que tem adaptadores. Pode fazer-se através do nariz, pode fazer-se espetando no fígado, em outros sítios – o que tem de ser é uma temperatura interna,” conta. Para que se consiga determinar um intervalo, credível, para a hora da morte, é necessário conjugar todos estes vários métodos. “Sendo certo que o mais eficaz é, de facto, o nomograma de Henssge”, conclui Duarte Nuno Vieira. O “nomograma” precisaria de dados rigorosos sobre a temperatura interna do cadáver, a temperatura ambiente da cela, o peso da vítima, a roupa que vestia – que a médica legista não recolheu de forma controlada, como atestam os relatórios – e, em conjunto com outros factores de correcção, seria possível calcular, com 95% de segurança, um intervalo para a hora da morte. Isso não aconteceu.  
Quanto à rigidez cadavérica, e apesar de não haver qualquer menção a este parâmetro no relatório que a médica elaborou, a PJ garante que o cadáver se encontrava em estado de “rigidez completa”. Na autópsia, feita no dia seguinte, está igualmente escrito que a rigidez é “acentuada em todos os membros”. Mas essa é uma descrição questionável. As próprias fotos das polícias, existentes no processo, mostram que há uma alteração significativa no ângulo em que o pescoço de Marcos está virado – quase nada, na foto que o mostra na cama; mais, na foto em que está no chão da cela. 
Estas duas fotos, tiradas com um curto intervalo de tempo, mostram que o braço também está erguido muito acima da cabeça, numa, e não na outra. Ou não havia a  “rigidez acentuada” dos músculos, inamovíveis nessa condição, “como uma tábua de madeira”, explica Duarte Nuno Vieira, ou o corpo foi manipulado sem qualquer cuidado quando o tiraram da cama e o colocaram no chão, podendo essa manipulação ter provocado lesões nos ossos e outros tecidos. 
Se ao moverem o corpo para o chão, os responsáveis da prisão, sob a vigilância da PSP, forçaram o pescoço de Marcos, essa pode até ser a razão para que na autópsia tenham sido constatados sinais de “compressão mecânica extrínseca”. 
Cristina Cordeiro centrou-se apenas num dos cinco métodos recomendados pelo INMLCF, os chamados “livores”, manchas de cor na pele do cadáver que resultam do depósito do sangue estagnado pela gravidade. 
Os livores, como explica Duarte Nuno Vieira, têm várias etapas, que correspondem a períodos temporais distintos. Um perito deve analisar os livores “para ver se são todos fixos, se são todos móveis, se uns são móveis e outros são fixos, porque isso dá-lhe mais um elemento até às seis, entre seis a 12 horas, mais de 12 horas após a morte”.
Depreende-se que os “livores arroxeados fixos” descritos pela médica legista indicam que a morte de Marcos ocorreu num período de tempo mais largo. 
Esta é a falha deste argumento da perita em tribunal. Mesmo que garantisse, contra todas as reservas dos seus pares, como vimos, que é possível calcular a hora da morte analisando apenas os livores, isso não lhe daria qualquer garantia científica de que a morte ocorrera quando a cela estava fechada – o argumento que fez de António o único suspeito.
Se Marcos estivesse morto há quase 24 horas quando foi encontrado, como o juiz sugeriu e a médica legista considerou “provável”, o corpo teria de apresentar outros sinais, que a perita também não descreve no seu relatório: manchas esverdeadas, geralmente no abdómen, que são o principal aviso de que se iniciou a fase da putrefacção, que geralmente ocorre de 18 a 24 horas após a morte. 
Façamos as contas: se Marcos tivesse morrido às 19 horas do dia anterior, como o tribunal admite, com a concordância da perita, seria muito provável que apresentasse, às 22h30 do dia seguinte, mais de 24 horas depois, sinais de putrefacção. Não apresentava. Este é apenas um exemplo que ajuda a perceber como o testemunho da perita no julgamento não se baseou em critérios científicos seguros. 
Às 14h30 do dia 14, na autópsia realizada por Cristina Cordeiro no Instituto de Medicina Legal de Coimbra, o cadáver de Marcos apresentava, pela primeira vez, uma “mancha verde na região umbilical e fossas ilíacas”. O que significa que a sua morte poderia ter um intervalo muito diferente daquele que o tribunal estipulou. Marcos pode ter morrido no dia 13, no período em que a cela, em circunstâncias normais, estaria aberta.
Duarte Nuno Vieira descreve a situação em que, para um médico legista, é possível assegurar que um cadáver tem mais de 12 horas: “Tem de ter, então, um arrefecimento praticamente completo, estar já à temperatura ambiente; tem de ter os livores já em início de fixação, eles começam a fixar às doze horas e, portanto, a maior parte deles têm de estar fixos; e tem de ter uma rigidez intensa, já bem perceptível em várias zonas corporais. E, depois, aplicando também o arrefecimento, o nomograma tem de lhe dar uma hora também compatível. Se tudo isto se conjugar, então, o médico pode começar a dizer que, com imensa probabilidade, o cadáver terá mais de doze horas. Não vai poder dizer se são catorze, se são treze e meia, mas vai poder dizer que é muito consistente com mais de doze horas. Obviamente, se já tem uma mancha verde abdominal – uma mancha cadavérica que é o primeiro sinal da putrefação –, então aí não tenho dúvida alguma, porque já vai precisar de quase 24 horas.”
Com o trabalho incompleto da médica legista é impossível determinar, com rigor, um intervalo exacto para a hora da morte. E o Ministério Público e o tribunal, ao usarem o intervalo que usaram, cometeram um erro. Esse erro resultou na perda de liberdade de uma pessoa.
Interrogada pela advogada de António, a perita assegurou ao tribunal que a morte de Marcos não poderia ter acontecido depois de as celas estarem abertas. Garantiu que, apenas com a observação dos “livores”, a morte ocorrera “mais de 12 horas” antes do seu exame. Mas a hora do seu exame está escrita: 22h30. “O exame foi concluído às 22h30. Mas eu cheguei lá mais cedo”. Quando? A médica não o refere, mas sabemos que ligou às 21h para a PJ. O que situa, afinal, as tais “12 horas” precisamente no período em que a cela estaria aberta, às 9 da manhã, e António tinha saído para tomar o pequeno-almoço. O que deitaria por terra o argumento principal para a sua condenação. 
Procurámos esclarecer junto de Cristina Cordeiro as suas opções para determinar a hora da morte e toda a sua participação determinante neste processo, desde as primeiras horas da investigação em Janeiro de 2016 às declarações que prestou em julgamento, mas recebemos uma resposta por parte do Instituto de Medicina Legal a afirmar que não comentam casos nos quais intervieram.  
A justiça tem várias máximas latinas conhecidas. In dubio pro reo é um dos alicerces do processo penal. Significa, justamente, que em caso de dúvida o réu não pode ser condenado porque a justiça penal está construída, em sociedades livres, para absolver na dúvida, e não para condenar na dúvida. Esse princípio é a defesa de todos nós, porque um cidadão terá muito mais dificuldade em provar o que não fez, do que uma instituição em provar que ele o fez.
Nem sempre é assim, como vemos nesta história. António foi condenado, mesmo sem um único indício de que cometera um crime ou um motivo para o ter cometido. “Estamos aqui a inverter o ângulo da prova. É o indivíduo, o arguido, que tem que provar a sua inocência em vez de ser o Ministério Público a provar a sua culpa”, resume Susana Costa, do CES. “Partimos do suspeito e, a partir daí, construímos uma narrativa, em vez de partirmos das provas que existem no local para procurarmos um suspeito”, critica a investigadora. Isso é o contrário do que afirma a lei portuguesa. 
“A prova forense começa a ser construída na cena do crime e, quando chega ao tribunal, o juiz já não pode rebobinar, andar para trás. Muitas vezes os juízes – e isto foi-me dito em entrevistas com juízes – percebem que algo mais poderia ter sido feito, mas naquele momento já não é possível andar para trás.” É também por isso que aos juízes se impõe absolver na dúvida.  Esta investigadora diz ainda que os juízes se sentem compelidos a confiar no trabalho feito pela investigação. “O próprio juiz queixa-se da falta de formação e de conhecimento para rebater aquilo que é um juízo pericial. No fundo, estamos perante aquilo que eu designei de «uma prova pronta a usar».”
Isso é bem visível na acusação do Ministério Público neste processo. Mais do que explicar como teria sido o homicídio de Marcos, a acusação fez uma resenha dos crimes que António cometera no passado e que o levaram até à cela de Coimbra. As marcas do seu passado foram o indício mais forte para a condenação.
António pertence a um agregado familiar numeroso e com dificuldades económicas, a “infância foi condicionada negativamente pelos comportamentos desajustados do pai, elemento referenciado como autoritário, violento e com consumos excessivos de bebidas alcoólicas”, dizem os relatórios oficiais. 
“Pelo comportamento irreverente e pelas dificuldades no cumprimento das regras escolares”, foi internado no Instituto Padre António Oliveira, onde terminou o 6º ano de escolaridade. Aos 16 anos foi preso durante dez meses no EP de Faro, pela prática de crime de furto. Seguiu-se o início de consumo de drogas e, desde então, tem andado dentro e fora da prisão por crimes de furto, ofensas corporais e falsificação de documentos. 
António “tem o perfil perfeito para arcar com as consequências”, diz Carlos Poiares, professor de Psicologia Forense na Universidade Lusófona, que refere que o índice de credibilidade de um depoimento está directamente ligado ao de fiabilidade.  A psicologia do testemunho permite aferir quais os comportamentos que mais induzem os juízes na credibilização e fiabilização dos depoentes. Há meios para que a justiça se livre de preconceitos como este. A “arqueologia do ânimo do indivíduo”, como a designa Carlos Poiares, permite despistar motivações e psicopatologias numa “autópsia psicológica”, feita por psicólogos forenses. Mas, talvez, António Sacramento Rodrigues “já estivesse descredibilizado antes de ser ouvido.” 
Susana Costa chama a arguidos como António os “suspeitos do costume”.
Mas António não é o preso que esperávamos. Recebeu-nos ansioso, amarrotando nas mãos uma pilha de papéis oficiais que tinha trazido e não nos pôde mostrar, do lado de lá do painel acrílico que nos separava, na prisão de Vale de Judeus.
Sorria muito e queixava-se de como a falta de dentes lhe estragava a aparência que gostaria de ter. Aos 52 anos, os seus olhos expressivos abrem-se quando fala da filha e dos netos.
“Como é que eu ia fazer-lhe mal? Eu nunca tirei a vida a ninguém, graças a Deus. Isto é uma coisa que vai contra os meus princípios, só Deus dá, só Deus tira.” António conta então uma história: “Sempre fui muito amigo dele. Ele praticamente não sabia ler nem escrever e queria aprender e eu «Oh Marcos, se quiseres, aprendes aqui!». Eu tenho uma forma muito boa de ensinar, mesmo até pessoas idosas, é uma forma delas aprenderem o A, B, C. Ensino-lhes de uma forma muito simples, incentivo-as. Por exemplo, o M, o A e o R, o que é? Mar! E depois, antes do M, põe-se lá o A, o que é? Amar! São coisinhas muito simples e a pessoa aprende.” 
Falámos igualmente por duas vezes com a mãe de António, que prefere não ser citada neste trabalho.  
Depois de várias conversas por telefone com a irmã de Marcos, fomos à Figueira da Foz para falar com ela, e com a mãe de ambos, mas as duas também preferem “esquecer” o que se passou na cela 17 da ala G do Estabelecimento Prisional de Coimbra, no dia 12 ou no dia 13 de Janeiro de 2016.
Mas um caso como este não fica, necessariamente, encerrado em definitivo. Existem em Portugal formas para rever uma sentença errada, se se descobrirem novos factos ou meios de prova que conduzam a dúvidas sobre a justiça da condenação, mesmo depois de se terem esgotado os prazos dos recursos ordinários e até mesmo após as penas terem sido cumpridas. Chama-se “revisão de sentença”, e é decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se de um mecanismo que revê os métodos falhados e analisa os factos que não foram tidos em conta tanto na investigação como no julgamento que levou à condenação de um arguido. Essa revisão pode garantir que a morte de Marcos, quando se encontrava à guarda e sob responsabilidade do Estado, não terá originado uma injustiça: a condenação de um inocente.
 
Com Ana Sofia Ribeiro, Inês Fajardo Silva e Lisleine Uchôa do Lago, jornalistas estagiárias, mestre em comunicação social na Universidade da Beira Interior e mestrandas em jornalismo na Universidade Nova de Lisboa. E Isabel Duarte, advogada do gabinete IDLEI, Advogados.

 

Reportagem originalmente publicada no jornal Público a 31.01.2021